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A saúde de mulheres vítimas de violência doméstica: a experiência com grupos reflexivos no II Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher
Resumo
O presente trabalho consiste na sistematização de experiência com grupos reflexivos de mulheres vítimas de violência doméstica desenvolvido no âmbito do poder judiciário[1] no II Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher – II JVDFCM – no Rio de Janeiro. O objetivo é problematizar as condições de saúde das mulheres que vivem e sofrem violência e as implicações para sua vida social e psicológica. Consideramos que mulheres que sofrem violência doméstica freqüentam mais os serviços de saúde pública do que as demais mulheres[2], apresentando demandas poli queixosas. A violência doméstica é um assunto de extrema relevância por se tratar de uma problemática cultural e social, uma vez que entendemos que o machismo é um subproduto da forma de organização e estrutura social. Ele reforça a alienação e os interesses dominantes ao buscar um enquadramento da mulher, colocando-a em um determinado lugar na sociedade na qual lhes são atribuídos papéis subalternos. Muitos casos de violência doméstica são detectados nas sublinhas das falas das mulheres em diversas instituições pelas quais passam em busca de atendimento, principalmente na área da saúde. Compete aos profissionais identificarem e orientarem da melhor forma possível no sentido de expor os direitos conquistados pela consolidação da Lei Maria da Penha. Aparentemente são casos que se manifestam apenas na área de saúde[3], apesar desta ser realmente a área na qual é maior o número de identificação. Nossa atitude profissional e nossa visão de mundo nos induz a culpabilizar o homem e vitimizar a mulher nos casos de violência doméstica e familiar. Ora, se estamos tratando de um aspecto cultural e ideológico, a violência doméstica é um reflexo do desenvolvimento social e cultural de nossa sociedade, assim como indica a possibilidade de questionamento dos padrões e valores dominantes. Ou seja, é algo complexo e dinâmico que requer uma análise minuciosa. A violência doméstica de gênero tem muitas formas; ela é universal, não tem classe social, nível de escolaridade, cor ou etnia. Percebemos, também, que a saúde das mulheres está diretamente vinculada ao processo de agressão sofrido, na medida em que, na grande maioria das vezes, este movimento obedece a uma escala, compreendendo uma seqüência de vários pequenos episódios constantes, composto por cenas de violência cotidianas. Este contexto se apresenta como um clima de terror doméstico, impedindo e, muitas vezes, fechando as possibilidades de saídas viáveis. As conseqüências desta violência se prolongam por muito tempo, marcando de forma decisiva as vítimas deste tipo de agressão. Entretanto, o assunto é ainda mais delicado, pois não estamos falando apenas de uma expressão ideológica do sistema capitalista. A mulher ocupa um “lugar secundário” na sociedade ao longo da história da humanidade. Os homens, por exercerem e ocuparem uma função dominante delegaram às mulheres espaços de passividade e obediência a normas e condutas morais. A divisão de papéis sociais entre homens e mulheres é tão marcante que ela atravessa diversas formas de organizações sociais. Por outro lado, podemos destacar que com o advento do capitalismo a opressão contra a mulher possui uma particularidade: ela se torna um subproduto da forma de produção capitalista. Com a mercantilização das relações sociais a mulher aparece com “propriedade privada” dos homens e seu corpo assume expressão de “mercadoria”. Mesmo que essas expressões não sejam tão evidentes e estejam sofrendo rupturas, elas se expressam de forma implícita através de uma leitura da realidade social no capitalismo. Assim, o trabalho do grupo visa informar, orientar e possibilitar a reflexão acerca das relações familiares, do debate de gênero e das teias de relações que perpassam a vida coti diana das mulheres e o lugar social que ocupam frente à sociedade capitalista; além de criar um espaço de diálogo e escuta no qual é possível externalizar sua história de vida. A lei 11.340/2006 estabelece a implementação de grupos reflexivos para autores de violência doméstica como medida educativa desenvolvidos no decurso do processo judicial, apresenta-se como uma possibilidade de informá-los sobre a Lei Maria da Penha e pautar o debate sobre as relações de gênero. Os grupos com os autores são desenvolvidos com o intuito de problematizar a violência doméstica e a cultura machista que perpassa nossa sociedade, sem apontar para um caráter punitivo e sim os tornando sujeitos ativos e críticos capazes de operar mudanças nas relações sociais; autônomos e responsáveis pelas suas atitudes, mas compreendendo as relações sociais no âmbito coletivo e não individual. A necessidade de desenvolver grupos com mulheres foi constatada pela equipe técnica após diagnosticarmos as possíveis redes de atendimento para mulheres vítimas de violência doméstica na região de abrangência de nossa intervenção profissional – Zona Oeste do Rio de Janeiro. Constatamos que há uma defasagem, falta de ações e políticas públicas voltadas para mulheres vítimas de violência doméstica[4] e que implicam em agravos à saúde das mulheres, principalmente no que tange a auto-estima e a saúde emocional e psicológica. Um dos programas que existia na região era localizado em Santa Cruz e, para muitas mulheres, o local era distante, demandando delas independência econômica para custear meio de transporte e alimentação, o que muitas não possuíam. Assim, iniciamos um projeto de trabalho com grupos reflexivos com mulheres vítimas de violência doméstica no âmbito do judiciário, além dos que já ocorriam com os agressores. Nossa metodologia de trabalho consiste em grupos fechados de no máximo vinte participantes desenvolvidos em oito encontros semanais nos quais levantamos temas relativos a família, filhos, mercado de trabalho, relacionamentos, violência contra as mulheres e os tipos existentes, Lei Maria da Penha, auto-estima e saúde da mulher; além de temas demandados pelas próprias participantes associados à violência de gênero. Devido a demanda apresentada, com muitos processos e poucos profissionais, estabelecemos alguns critérios prioritários para a participação das mulheres, a saber: mulheres que demandam esse tipo de atendimento no decorrer de entrevistas ou por demanda espontânea; mulheres que possuem filhos menores de idade no relacionamento que tiveram com o agressor; mulheres que solicitam retratação do processo e desistem por manterem o relacionamento com o agressor; mulheres que apresentam auto-estima baixa e/ ou queixas acerca de sua saúde em decorrência da violência vivida. A participação das mulheres no grupo não é obrigatória, por isso avaliamos que elas possuem boa participação considerando as condições das mulheres na sociedade: muitas são mães, cuidam de parentes mais idosos, são responsáveis pelas tarefas do lar e não possuem dependência econômica. Portanto, o grupo é um espaço de independência, autonomia, escuta e reflexão, possibilitando análises e escolhas que gerem a emancipação dessas mulheres. No decorrer do grupo realizamos os encaminhamentos necessários para o enfrentamento da realidade após a violência sofrida nesse sentido adotamos o posicionamento do Ministério da Saúde (Brasil, 2002), expresso na Norma Técnica sobre violência sexual que o enfrentamento da violência exige a efetiva articulação de diferentes setores, tais como saúde, segurança pública, justiça e trabalho, bem como o envolvimento da sociedade civil organizada, configurando redes integradas de atendimento para que a mulher possa criar novas condições emocionais e materiais para (re) organizar sua vida de maneira diferente. Neste movimento, a Rede de Apoio tem uma função muito importante, pois permite fornecer atenção integral as vítimas de violência de gênero, os autores e familiares. Sem a Rede de Apoio, todo o trabalho inicial do Serviço Social, não teria êxito, uma vez que a integralidade do atendimento está diretamente relacionada a uma série de instituições capazes de responder as demandas reais e potenciais das partes assistidas no II JVDFM. Entendemos que o trabalho da equipe é de extrema importância, já que permite uma escuta qualificada que muitas vezes não é encontrado na família, nos amigos, na delegacia de polícia ou em tantas outras instituições. [1] O relato de experiência apresentado ao longo desse trabalho ocorreu no período de março de 2009 até o presente momento no nosso processo de trabalho como assistentes sociais do II Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher em Campo Grande/ Rio de Janeiro situado na Zona Oeste e abrangendo as áreas de Bangu, Campo Grande e Santa Cruz. A análise é pautada em dados empíricos baseados em diários de campo profissional sobre o trabalho desenvolvido com os grupos de mulheres vítimas de violência doméstica. [2] Dado apontado por publicação do Ministério da Saúde intitulado “Violência intrafamiliar: orientações para a prática em Serviço”. O documento aborda a violência doméstica e familiar e apresenta diversas conseqüências para a saúde da mulher, mesmo que as perdas sofridas ainda sejam pouco dimensionadas. Um dos aspectos que dificultam este dimensionamento é o fato dos serviços de saúde terem dificuldades de diagnosticar e registrar os casos de violência intrafamiliar. Dessa forma, “a prevalência significativa da violência intrafamiliar constitui sério problema de saúde, grave obstáculo para o desenvolvimento social e econômico e uma flagrante violação aos direitos humanos” (Cadernos de atenção básica nº 8, 2002, p. 10). E ainda, “mulheres em situação de violência são usuárias assíduas dos serviços de saúde. Em geral, são tidas como ‘poliqueixosas’, por suas queixas vagas e crônicas, com resultados normais em investigações e exames realizados” (Cadernos de atenção básica nº 8, 2002, p. 47). Apresentam sintomas denominados de psicossomáticos. [3] Dado apontado por publicação do Ministério da Saúde intitulado “Violência intrafamiliar: orientações para a prática em Serviço”. O documento aborda a violência doméstica e familiar e apresenta diversas conseqüências para a saúde da mulher, mesmo que as perdas sofridas ainda sejam pouco dimensionadas. Um dos aspectos que dificultam este dimensionamento é o fato dos serviços de saúde terem dificuldades de diagnosticar e registrar os casos de violência intrafamiliar. Dessa forma, “a prevalência significativa da violência intrafamiliar constitui sério problema de saúde, grave obstáculo para o desenvolvimento social e econômico e uma flagrante violação aos direitos humanos” (Cadernos de atenção básica nº 8, 2002, p. 10). E ainda, “mulheres em situação de violência são usuárias assíduas dos serviços de saúde. Em geral, são tidas como ‘poliqueixosas’, por suas queixas vagas e crônicas, com resultados normais em investigações e exames realizados” (Cadernos de atenção básica nº 8, 2002, p. 47). Apresentam sintomas denominados de psicossomáticos. [4] Na ocasião, identificamos que o programa mais articulado da região era o “SOS mulher” desenvolvido no Hospital Pedro II em Santa Cruz. Entretanto, após o início da reforma do hospital em 2009 o programa foi paralizado e só posteriormente foi reativado em outra unidade.