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ASSASSINATOS DE TRAVESTIS E TRANSEXUAIS NO RIO GRANDE DO SUL
Resumo
Introdução Este trabalho é fruto de uma trajetória de pesquisa por parte dos autores no tema das violências e foi desenvolvido inicialmente a partir da pesquisa “Femicídios: assassinatos pautados em gênero no Rio Grande do Sul” (MENEGHEL, 2010). A proposta desta pesquisa era descrever o perfil de homicídios femininos no Estado e investigar aspectos qualitativos presentes nos inquéritos policiais de homicídios de mulheres ocorridos nos últimos cinco anos. Ao iniciarmos a leitura dos inquéritos policiais nas delegacias de polícia do Estado, o grupo de pesquisa começou a ouvir relatos dos operadores da segurança pública de outros tipos de assassinatos que tinham semelhança com aqueles que estávamos pesquisando. Esses relatos referiam-se a homicídios contra gays, travestis e transexuais. Na mesma época, iniciou-se uma articulação dos pesquisadores com movimentos LGBT da sociedade civil organizada no município de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, especialmente com a Associação de Travestis e Transexuais do Rio Grande do Sul/ONG Igualdade-RS. Esta ONG desenvolve projetos no campo da saúde e dos direitos humanos, através de ações de prevenção e promoção da saúde e da cidadania para a população de travestis e transexuais na Região Metropolitana de Porto Alegre-RS. Assim, a partir da constatação de que havia outras informações sobre assassinatos que se aproximavam da categoria “violência de gênero” que não estávamos coletando nas delegacias – em função de não se configurar inicialmente como objeto da pesquisa – e a partir da nossa inserção nos movimentos LGBT, entendemos que seria importante lançarmos um olhar sobre a problemática dos assassinatos de travestis e transexuais. Objetivo Geral - Construir o perfil dos assassinatos de travestis e transexuais no Estado do Rio Grande do Sul. Objetivos Específicos - Identificar e analisar os inquéritos policiais referentes a travestis e transexuais assassinadas no RS; - Compreender os discursos de atores sociais acerca do assassinato de travestis e transexuais no RS; - Subsidiar a construção de políticas públicas para o enfrentamento dos assassinatos pautados em gênero para esse público. Metodologia Este é um estudo de abordagem qualitativa. A coleta de dados foi realizada inicialmente através de quatro grupos focais com informantes-chave da ONG Igualdade, com objetivo de buscar nomes de travestis e transexuais assassinadas no RS nos últimos cinco anos (crimes ocorridos no período de 2006 a 2011). Além disso, realizamos buscas sistemáticas em jornais de grande circulação de Porto Alegre, compreendendo o mesmo período de tempo (2007 até 2011). A partir da identificação dos nomes das travestis e transexuais assassinadas, o grupo de pesquisadores foi em busca dos inquéritos policiais na Delegacia de Homicídios do RS, a fim de realizar leitura e análise dos mesmos. Nos inquéritos, foram buscados dados demográficos da vítima e do agressor, bem como informações a respeito da relação entre agressor e vítima. Como o presente estudo encontra-se em andamento, partiremos em seguida para a fase de análise dos dados. A discussão qualitativa corresponderá à análise das práticas discursivas veiculadas nos inquéritos policiais, objetivando identificar a construção social do evento “assassinato pautado em gênero” na população de travestis e transexuais do RS. Os discursos serão analisados em busca de padrões ou de eventos/asserções/proposições que se repetem, mas também de omissões, lacunas e silêncios em relação ao homicídio. Discussão A(s) violência(s) e os assassinatos cometidos contra Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais evidenciam a homofobia e outros processos estigmatizantes e discriminatórios que são direcionados a estas pessoas. A homofobia não ocorre de maneira isolada de outras formas de discriminação social: ao contrário, ela caminha ao lado e se reforça pelo machismo, o racismo, a misoginia e todas as formas correlatas de discriminação, sendo estas causadores de sofrimento, adoecimento e até mesmo a morte Segundo dados do Grupo Gay da Bahia (GGB), entre 1963 e 2005 foram assassinados 2.582 pessoas LGBT no Brasil. Estes números são bastante expressivos e reveladores de uma homofobia que coloca o Brasil, segundo o mesmo Grupo, como campeão mundial nessa modalidade de crime de ódio (LEAL e CARVALHO, 2008). O GGB tem realizado monitoramento dos assassinatos por homofobia no Brasil através da coleta de informações na mídia jornalística e, segundo os dados coletados, o risco de uma travesti ser assassinada é de 262 vezes maior do que um gay. O problema é relevante, na medida em que não existem estatísticas oficiais sobre esse tipo de crime no país e, consequentemente, não há políticas públicas que façam o enfrentamento dessa questão. Da mesma forma, o 3º Relatório Nacional sobre os Direitos Humanos no Brasil indica que, entre 2003 a 2005, foram relatados 360 homicídios de gays, lésbicas e travestis no país. A ausência ou precariedade nos sistemas de informação dificulta a estimativa do número real de assassinatos baseados em gênero. Na maioria dos países latino-americanos, os sistemas de compilação de dados não oferecem estatísticas precisas a respeito das vítimas, suas relações com os perpetradores, a causa específica das suas mortes, os motivos do crime ou a existência de violência doméstica prévia. Consequentemente, as investigações muitas vezes dependem da imprensa para informações, o que resulta em uma subestimativa do número real de assassinatos cometidos. Assassinatos de travestis, conforme estamos propondo, também podem se configurar como um tipo de crime baseado em gênero, decorrente de atitudes homofóbicas e de rejeição e negação de outras modalidades de vínculo amoroso e sexual que não o heterossexual, monogâmico e reprodutivista. Como essas pessoas não se adaptam ao modelo natural (biológico) a que foram destinadas, cria-se um clima de terror que tende a gerar violências simbólicas, institucionais, cujo desfecho mais trágico é a morte. Em estudo realizado no Rio de Janeiro sobre assassinatos de homossexuais, CARRARA & VIANNA (2006) observaram que este tipo de crime, quando cometido contra travestis e transexuais, ocorre com maior frequência na rua, por arma de fogo e correspondendo quase todos a crimes de execução, sendo estes maciçamente arquivados. Esses dados sinalizam para o grau de impunidade que incide sobre a execução desta população. Os autores apontam ainda que a vulnerabilidade das travestis aos homicídios ocorre tanto pelo envolvimento com a atividade de prostituição - que as coloca numa posição de maior exposição pública - quanto ao modo pelo qual a homofobia as atinge. Assim, há casos em que a identidade de gênero da vítima, o simples fato de "ser travesti", parece ser o fator determinante da execução (CARRARA E VIANNA, 2006). Nos encontros com o grupo de travestis da ONG Igualdade, percebemos o quanto essa população está exposta a diferentes situações de risco e vulnerabilidades sociais, em função da orientação sexual e do sofrimento psíquico oriundo do mundo do trabalho e de suas relações. Grande parte das travestis é profissional do sexo e dificilmente encontram colocação no mercado formal de trabalho. Embora não se possa afirmar categoricamente que existe falta de oportunidades para esse grupo populacional no mercado de trabalho – o que carece de maior análise, não sendo objeto deste artigo – pode-se supor que a orientação sexual, associada à transformação da imagem corporal, cria uma barreira de acesso ao trabalho formal. Além disso, percebemos que de modo geral as travestis e transexuais não tem vínculo ou suporte familiar com relação ao seu núcleo familiar de origem, em função do abandono motivado pela orientação sexual e identidade de gênero do ente. A população de transgêneros tende a sair cedo de casa, ainda na adolescência, e costumam trocar de cidade com bastante frequência. Percebemos, ao longo dos grupos focais, que a elevada mobilidade pode sugerir uma estratégia de fuga frente a ameaças reais à vida, diante de riscos iminentes e até de risco de morte. Assim, o trânsito das travestis e transexuais pelo país e até mesmo para o exterior pode, em alguns casos, estar associado a situações de conflito com antigos companheiros e clientes, onde está em jogo uma ameaça real à vida. Os relatos nos mostraram ainda que as instituições públicas têm sido espaços geradores de violência(s), na medida em que o acesso a serviços básicos como os de saúde, educação, justiça e cidadania é dificultado a esta população. Muitos relatos de violação de direitos, tais como o não reconhecimento do nome social em estabelecimentos públicos de saúde, ou mesmo nas escolas públicas, têm se repetido, ocasionando sérios efeitos sobre a dimensão psicológica dessas pessoas. Com relação aos inquéritos policiais até agora coletados, percebemos que estes reproduzem o discurso heteronormativo e homofóbico da sociedade brasileira, na medida em que as investigações são omissas, apontando preocupações com os detalhes da vida pessoal da vítima, revitimizando a mesma. Percebe-se ainda que, como não há investigação adequada, os assassinos tendem a ficar impunes. Além disso, percebemos que as famílias das travestis e transexuais, de forma geral, não exercem poder fiscalizador perante os órgãos da segurança pública, deixando de cobrar da polícia e do aparelho judiciário a devida atenção que deveria ser dada à morte de seu familiar. Acreditamos que reconhecer os fatores que se entrecruzam e maximizam a vulnerabilidade e o sofrimento desse grupo populacional, através da análise dos boletins de ocorrência e dos inquéritos policiais, permitirá evidenciar as diferentes formas de discriminação, inclusive a institucional – aquela perpetrada por órgãos públicos, que são responsáveis, em última análise, pela proteção dos sujeitos e coletivos – cometidas historicamente contra a população de travestis e transexuais, dando visibilidade às graves situações de sofrimento e violação de direitos fundamentais que estas pessoas vivem cotidianamente. Considerações Finais Consideramos que esta pesquisa pode auxiliar na visibilização dos assassinatos pautados em gênero como um problema social e de saúde pública. Além do mais, acreditamos que os resultados desta investigação contribuirão para a formulação de ações e para a criação de políticas públicas que façam enfrentamento a esta realidade. Referências CARRARA, S. & VIANNA, A.R.B. "Tá lá o corpo estendido no chão...": a violência letal contra travestis no município do Rio de Janeiro. Physis. 2006, 16(2), 233-249. CARRARA, S. & VIANNA, A.R.B. A violência letal contra homossexuais no município do Rio de Janeiro: características gerais. s/d. (mimeo). GARCIA, M.R.V. Identity as a “patchwork”: aspects of identity among low-income Brazilian travestis in Culture, Health and Sexuality, 11(6), 2009. pp.611-623. LEAL, B.S. & CARVALHO, C.A. Entre a ausência estatística oficial e o assassinato por ódio: o problema da homofobia no Brasil. XVI Encontro Nacional de Estudos Populacionais, Caxambu, 2008. Disponível em: http: //www.ongtucuxi.net/artigos/o_problema_da_homofobia_no_brasil.pdf WEBBER IB & MENEGHEL SN. Femicídio – Um estudo sobre mortalidade por agressão no Rio Grande do Sul, 1999 a 2005. São Leopoldo: UNISINOS; 2007. ZAGO, M.C. (Tra)vestindo a vida: trajetórias das travestis no trabalho. Trabalho de Conclusão Curso de Psicologia. UNISINO