Rede Unida, 10º Congresso Internacional da Rede Unida


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COTIDIANO DE VIDA E TRABALHO NA ESF: QUAL O LUGAR DA VIOLÊNCIA DE GÊNERO NO TRABALHO DAS AGENTES COMUNITÁRIAS DE SAÚDE?
Sonia Maria Dantas-Berger, Regina Helena Simões-Barbosa

Resumo


Introdução: O tema da violência de gênero vem adquirindo importância nas agendas de saúde, com ênfase sobre o papel estratégico de equipes de saúde na identificação, acolhimento e encaminhamento dos casos para enfrentamento deste grave problema. Porém, apesar dos avanços em termos da proposição de políticas públicas para redução da morbimortalidade por violências, promoção da saúde e dos direitos humanos das mulheres, ainda constata-se uma atuação desarticulada entre o setor saúde e as redes intersetoriais de atenção à violência, além de uma formação profissional limitada, baseada no modelo biomédico, para lidar com os complexos problemas sociais que adentram a assistência à saúde, entre os quais o da violência. No trabalho da Estratégia Saúde da Família (ESF), que tem atuação capilar na atenção à saúde, considera-se ser relevante conhecer como se processa a integração da violência de gênero, visto que sua abordagem demanda estratégias diferenciadas de educação na e em saúde. Objetivos: Através de enfoque crítico e transversal de gênero e da pesquisa-ação, pretende-se identificar questões, propor reflexões e gerar ações que colaborem para a integração da violência de gênero na ESF, com ênfase sobre o trabalho das Agentes Comunitárias de Saúde (ACSs), profissionais em sua maioria mulheres que, pelo atravessamento das dimensões de gênero, classe e raça, convivem com situações de precariedade do trabalho e vulnerabilidade relacional. Método: Adota-se uma triangulação de métodos que combina abordagens qualitativas e quantitativas, capitaneadas pela pesquisa-ação (PA). A PA, como aqui compreendida, possibilita que os sujeitos sociais produzam um novo conhecimento que desnaturalize e problematize aspectos da vida alavancando uma práxis que busca transformar coletivamente uma realidade percebida como opressora e/ou injusta. Na 1a etapa, 18 entrevistas semi-estruturadas com ACSs e 20 questionários estruturados com gestores foram realizados. A 2ª etapa prevê a realização de grupos focais e oficinas com equipes da ESF, que serão planejadas conjuntamente, a partir dos seminários de restituição dos resultados. Resultados: O questionário foi auto-preenchido e levantou conhecimentos e percepções de gestoras de nove entre dez CAPs - Coordenações de Áreas Programáticas da SMSDC/RJ- sobre a violência de gênero, as políticas e normas relacionadas. Em sua maioria, eram enfermeiras e assistentes sociais responsáveis por ações e programas nos âmbitos da ESF e/ou dos Núcleos de Promoção da Solidariedade e Prevenção das Violências, que já participaram de alguma capacitação sobre o tema, especialmente sobre a violência contra crianças e adolescentes, a violência sexual e o sistema de notificação e, que apresentavam algum conhecimento sobre políticas e normas relacionadas. As entrevistas com ACSs abordaram experiências familiares e pessoais no trabalho, conhecimentos e práticas sobre gênero e violência e avaliação da formação para acolhimento dos casos. Foram incluídas na análise 12 entrevistas com ACSs do sexo feminino e quatro do masculino. As idades variaram entre 22 e 55 anos. Eram em grande parte casadas(os) ou unidas(os) e com filhos. Apenas um homem solteiro informou viver com renda de cerca de um salário mínimo e meio, enquanto pelo menos oito relataram renda familiar igual ou maior que três salários e meio. Em termos de escolaridade, cinco informaram já ter freqüentado algum curso superior. Todos eram contratados via Organizações Sociais (OSs) e o tempo de trabalho como ACS variou entre um e 12 anos, sendo que a maior parte se concentrou no período de até quatro anos (11). Em termos da situação de trabalho e vida familiar na infância, boa parte informou que suas necessidades básicas foram minimamente atendidas, mas com esforço compartilhado por todos familiares. Pelo menos cinco cresceram em condições de precariedade material. A violência entre parceiros íntimos (VPI) foi vivenciada por cinco das agentes comunitárias e superada de alguma forma por três delas: uma com a ajuda do chefe do tráfico local que ‘expulsou’ este agressor; outra, denunciando e se separando do parceiro; e, outra, se mantendo casada com o parceiro (ex-agressor), porém conquistando sua autonomia financeira e emocional dentro do casamento. No balanço sobre as condições atuais de vida de homens e mulheres, as tendências foram considerar que, em geral, houve melhorias para a mulher, mas, ao mesmo tempo, que piorou para o casal e para os homens que, ao se sentirem ‘inferiores’, por vezes, reagem com violência. Entre as mais novas e de baixa renda, um dos grupos reconhecidos pelos participantes como mais vulnerável à VPI, as agressões físicas e verbais mútuas foram consideradas comuns. Tanto gestoras como ACSs reconheceram que a violência contra mulheres é um problema freqüente nas comunidades. O papel do setor saúde foi quase sempre avaliado como positivo pela gestão; porém, um dos limites apontados seria o foco do trabalho junto aos profissionais estar na notificação, já que persiste um despreparo para a abordagem dos casos. Agentes comunitárias/os em geral demonstraram insegurança na abordagem direta do tema nas visitas domiciliares tanto pelo lugar que ocupam - profissionais e vizinhos – como pelas particularidades de algumas famílias ligadas ao tráfico, como ainda, por demandarem maior retaguarda da equipe no processo, valorizando principalmente o papel da(o) enfermeira(o). Conclusões: Uma análise global sugere haver descompassos nos três níveis de ação: o nível central, que coordena ações de vigilância e educação na saúde para prevenção da violência e promoção da cultura de paz, garante algumas articulações intra e intersetoriais para integração da temática e implantação de linha de cuidado, porém sem incorporar um enfoque crítico de gênero e alcançar maior capilaridade nas ações; o regional, que vem concentrando esforços na implantação da notificação dos casos e sistematização da informação, encontrando-se em pleno processo de cumprimento de uma rotina operacional que ainda garante pouco espaço para discussões sobre os casos identificados e as dificuldades encontradas; e o local, das unidades mistas de saúde e Clínicas da Família, onde se constata uma ‘invisibilidade’ da violência nas rotinas instituídas, o que contrasta com a realidade de vida e trabalho das ACSs, equipes e comunidades, onde as situações de violência permeiam seu cotidiano. Apesar dos esforços da gestão, observou-se que o problema da violência de gênero não está visível nem institucionalizado na ESF. Partindo-se desta realidade detectada e compartilhada, espera-se contribuir para uma formação diferenciada em saúde que articula ensino, pesquisa e assistência e promove processos de discussão e ação coletiva para enfrentamento da violência de gênero.