Rede Unida, 10º Congresso Internacional da Rede Unida


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Práticas de cuidado a mulheres rurais vítimas de violência: discutindo a partir da perspectiva da atenção integral
Marta Cocco da Costa, Joannie dos Santos Fachinelli Soares, Marta Julia Marques Lopes

Resumo


A temática da violência contra as mulheres rurais é de extrema relevância para o setor da saúde, uma vez que os índices de violência contra as mulheres, a “invisibilidade” dessa problemática no campo da saúde e as incipientes estratégias de intervenção a partir dos serviços, são elementos que se articulam e tensionam o sistema de atenção. Além disso, no meio acadêmico há poucos estudos enfocando a violência contra as mulheres residentes e trabalhadoras rurais e, em particular, pouco se conhece a respeito dessa especificidade geossocial. Nessa direção, o presente trabalho trata de estudo qualitativo que buscou conhecer e analisar práticas de cuidado de profissionais de saúde a mulheres rurais vítimas de violência, na perspectiva da atenção integral, em municípios da Metade Sul do Rio Grande do Sul. Foram participantes profissionais, trabalhadores dos serviços de saúde, que atuam em áreas rurais, em números, totalizam-se 43 participantes. As informações foram geradas por meio de entrevista e analisadas pela modalidade temática. Apontam-se como elementos de cuidados às usuárias rurais em situações de violência os dispositivos relacionais: acolhimento, vínculo e diálogo. Nas dimensões referidas observou-se que o acolhimento pressupõe atitude ética e de cuidado, interesse pelas necessidades do outro, abertura humana, respeito ao usuário, como também avaliação de riscos e vulnerabilidades, como elementos que atestam a materialidade dos eventos de violência. Já o estabelecimento do vínculo com as mulheres rurais permite a construção de relações de confiança e de abertura para o outro, como também possibilita a reciprocidade de experiências e fomenta a interlocução entre sujeitos. Isso potencializa formas de negociações que caminhem no consenso de necessidades e responsabilidades compartilhadas de forma horizontal e de reconhecimento do outro como detentor de poderes/direitos e saberes, questionando as ações de cuidado centradas meramente no saber do trabalhador. Constatou-se que para a constituição e fortalecimento do vínculo e da confiança alguns trabalhadores referiram à importância de “valorizar” a comunicação e o diálogo com as mulheres rurais, pois por mais reduzido que ele seja, abre-se uma porta para que a “vida dessa mulher” na dinâmica do trabalho em saúde, permitindo, muitas vezes, superarem seus sentimentos de medo e vergonha para falarem sobre situações de violência. Assim, é esse encontro que possibilita a problematização das situações de violência vividas no cotidiano e naturalizadas na dimensão das relações assimétricas do mundo privado da família. O encontro com algum trabalhador da saúde pode transformar-se em fundamento para mudanças, visibilizando e empoderando essa mulher para atitudes de enfrentamento consequente dessas situações. Além dos elementos relacionais identificou-se também a construção de ações coletivas por meio de atividades grupais, peças teatrais reconhecidas como potencializadoras da promoção da saúde e do empoderamento individual e coletivo na dimensão dos eventos violentos. O espaço de grupo foi mencionado pelos trabalhadores como lócus privilegiado para a identificação de casos de violência contra as mulheres rurais, e também com o propósito de oferecer um lugar “protegido” de trocas de experiências e de construção de cidadania. Esse espaço, não raro, é o único que possibilita às mulheres rurais estarem em outro ambiente que não o do domicílio. Em geral, estão limitadas ao isolamento no próprio sofrimento naturalizado e pelo afastamento concreto, muitas vezes também geográfico, de qualquer serviço que possa funcionar como rede de apoio. Ao desenvolver trabalhos com grupos, tem-se a oportunidade de estimular os integrantes a encontrarem estratégias coletivas de enfrentamento dos problemas vividos por eles próprios, reconhecendo potencias na comunidade de origem. Assim, esses momentos coletivos constituem-se em possibilidades concretas (afastamento do domicílio, espaço de proteção) para tomada de consciência e reconhecimento de alianças capazes de proporcionarem alternativas ao vivido até então. Nas atividades de grupo mencionadas pelos participantes também são desenvolvidas oficinas com as mulheres rurais para a geração de renda que, segundo eles, potencializa seu empoderamento e autonomia. Essas ações coletivas proporcionam espaços de aprendizado e também estimulam às mulheres rurais a produzirem, seja o artesanato ou outros utensílios como forma de geração de renda, rompendo com formas enrijecidas de ser e viver, de mulheres silenciadas, submetidas a um “destino de gênero”. As oficinas, que fomentam a geração de renda das mulheres rurais, repercutem fortemente também na sua valorização e proporcionam a elevação da autoestima, o que para muitas mulheres rurais, segundo os participantes, encontra-se prejudicada. Por isso, desenvolvê-la possibilita enfrentar a vida com mais confiança, boa vontade e otimismo, além disso permite expandir a capacidade de ser feliz e autonomia. Destaca-se que os elementos potencializadores da integralidade de atenção a mulheres rurais vítimas de violência, discutidos, apresentam-se como ferramentas importantes no processo de construção da ação em saúde. Embora se reconheça a ação isolada, ainda dependente de indivíduos, evidencia-se, nesse estudo, que há um tensionamento nas práticas de cuidado dos profissionais para a inclusão das violências como eventos do campo de atuação da saúde, bem como das usuárias rurais como protagonistas do cuidado, estabelecendo uma relação entre sujeitos-trabalhador-usuária. As mulheres rurais são protagonistas de situações singulares a serem reconhecidas como tal, por isso, desvelar a violência no interior dos serviços de saúde é fundamental para sua compreensão, o que exige, portanto, transformação de saberes e práticas, reconhecimento e responsabilização de serviços como coletivos de atenção em saúde e de profissionais, para além do técnico, como cidadãos comprometidos com deveres de cidadania na luta contra as práticas inaceitáveis de violência. Descritores: Violência contra a mulher; Saúde da População Rural; Atenção Primária a Saúde.