Rede Unida, 10º Congresso Internacional da Rede Unida


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A prática do mindfulness em grupo para dependentes de crack internados
Geli Cardoso Eidelwein, Renata Brasil Araujo, Lauro Roberto Borba Junior

Resumo


O crack é uma droga derivada da cocaína, um estimulante do sistema nervoso central, que pode ser injetada ou aspirada, ou ainda convertida na sua forma alcalina, a pasta básica ou crack. Com alto potencial dependógeno, o crack produz complicações decorrentes do seu uso, que vão desde o calor e rubor, tremores incontroláveis, desmaios e convulsões, até a overdose, problemas cardiovasculares, respiratórios, promiscuidade sexual, suicídios, homicídios e quadros psiquiátricos. O primeiro relato de consumo de crack no Brasil ocorreu na cidade de São Paulo, no ano de 1989. Nos últimos 20 anos se pôde observar um crescimento significativo do consumo de crack em todo o Brasil, e atualmente, os casos de dependência já são responsáveis por 70% das internações por cocaína. Por ser uma droga relativamente nova, o conhecimento que se tem a respeito do seu tratamento ainda é escasso, o que tem feito com que as políticas públicas de prevenção e tratamento sejam ainda insuficientes. Entre os maiores desafios que os serviços de saúde tem enfrentado no tratamento de dependentes de crack estão a fissura e os sintomas de ansiedade. O craving ou fissura é um desejo intenso de utilizar uma determinada substância, e está entre os principais motivos que levam os dependentes de substâncias psicoativas como o crack a recaírem e abandonarem a terapia. O transtorno ansioso, que tem como principais sintomas a inquietação motora, sudorese, taquicardia, angustia, e mal estar generalizado, é outro problema relacionado ao uso abusivo de drogas. Isto porque os ansiosos tendem a buscar alívio para a ansiedade em drogas como a maconha, crack, ópio e morfina. O que se tem preconizado como tratamento mais eficaz para os dependentes de crack é o uso concomitante de medicação e terapia cognitiva ou comportamental. Dentre as técnicas utilizadas pelas terapias cognitivas e comportamentais para o manejo da fissura e da ansiedade está a prática de mindfulness. O termo mindfulness refere-se a uma consciência sincera, de momento a momento, não julgadora. Com suas raízes em tradições como o budismo, yoga e taoísmo, ela consiste na atenção, no momento presente, a todos os eventos internos ou externos, sem qualquer julgamento ou resistência. Tendo como objetivos o aumento da aceitação e a diminuição da evitação das experiências internas, sua prática pode ser resumida como a percepção sem julgamentos de sensações corporais, pensamentos, emoções, imagens, sons, cheiros e gostos. Há práticas formais de mindfulness como a meditação, o yoga, o chi kung e o tai chi chuang, e outras não formais, que consistem na atenção plena em qualquer atividade cotidiana como comer, caminhar, lavar louça, ou outra. Apesar de estar ligado a diversas tradições religiosas, o mindfulness vem sendo praticado também fora do contexto religioso, tendo como principal benefício desta dissociação a democratização da sua prática. Na década de 1970, na Stress Reduction Clinic, se começou a utilizar a prática de mindfulness em programas de redução do estresse. Após os resultados positivos observados nestes programas, diversos terapeutas cognitivos e comportamentais vêm também estudando e adotando este modelo de intervenção. A rápida absorção desta técnica por parte dos terapeutas cognitivos e comportamentais pode ser explicada pelo fato da noção do mindfulness estar já anteriormente e de forma implícita presente nas práticas clínicas tradicionais das terapias cognitivas e comportamentais. Na considerada terceira onda das terapias comportamentais há diversas abordagens que adotaram a técnica mindfulness, destacando-se a terapia de aceitação e compromisso (ACT); a terapia comportamental dialética (TCD); a terapia cognitivo-comportamental baseada na aceitação (TCBA); e a terapia cognitivo-comportamental baseada em mindfulness e aceitação. Atualmente se vem utilizando a prática de mindfulness não somente nos programas de redução do estresse, mas também no tratamento de outras patologias como o Transtorno de Ansiedade Generalizada, Transtorno de Pânico, dores crônicas, depressão, e como prevenção da recaída com dependentes químicos. O objetivo deste trabalho é apresentar a experiência da realização de um grupo de mindfulness para dependentes de crack internados em uma unidade especializada para dependência química. O grupo de mindfulness é realizado com frequência semanal com duração de 30 minutos e são convidados a participar todos os pacientes dependentes de crack que estejam entre 5 e 15 dias em abstinência, que não apresentem sintomas psicóticos e que tenham condições físicas e cognitivas para participar desta intervenção. Participam de 5 a 10 pacientes, do sexo masculino, entre 18 e 65 anos de idade, e o grupo é dividido da seguinte forma: 1- exercícios de alongamento; 2- explicação da respiração diafragmática e da postura corporal para a prática de mindfulness; 3- aplicação da técnica; 4- psicoeduação do grupo a respeito da técnica; 5- solicitação de feedback aos pacientes. Na fase 1 são adaptados 5 exercícios de alongamento do Lian Gong, um dos sistemas da ginástica terapêutica chinesa, com o objetivo de preparar o corpo dos participantes para a prática de mindfulness. Na fase 2 é solicitado que os participantes sentem-se confortavelmente nas cadeiras, mantendo a coluna ereta, os ombros relaxados, o dorso das mãos repousando sobre as pernas ou joelhos, o pescoço relaxado com o queixo ligeiramente para dentro, a língua no palato, e os olhos fechados ou semiabertos. É, ainda, solicitado aos participantes que se mantenham em completo silêncio e com o corpo imóvel durante toda a prática. Na fase 3 é aplicada a técnica propriamente dita. Uma das meditações utilizadas é a atenção plena na respiração, que é feita através da condução verbal do terapeuta, mais ou menos da seguinte forma: torne-se consciente da sua respiração, percebendo o ar entrar e sair enquanto você respira; sinta a sua barriga subir quando o ar entra e descer quando sai; procure não controlar a respiração, apenas a observe passivamente; se pensamentos ou sentimentos surgirem em sua mente, não tente suprimi-los nem os ignore, simplesmente observe-os; então, volte para a percepção da respiração e do movimento da barriga, usando-as como âncoras; caso os mesmos pensamentos surjam de forma persistente, apenas os observe, sem julgar, e volte para a respiração; perceba os pensamentos como nuvens passageiras, que vêm e vão; procure não lutar contra eles; sempre que sua mente, por qualquer motivo, se afastar da respiração, traga-a suavemente de volta; para terminar a meditação, mexa levemente os pés, as mãos, se espreguice, abra os olhos, e permaneça por um minuto ou mais ainda em silêncio. Ao término, na fase 4, é explicado que esta técnica pode auxiliar na impulsividade, no manejo da fissura e na diminuição dos sintomas da ansiedade, funcionando como estratégia para a prevenção da recaída. Os pacientes tem relatado no feedback diminuição significativa da fissura e dos sintomas de ansiedade durante a realização da técnica. Além disso, verbalizam que conseguem relaxar e percebem que a técnica pode ser útil após a alta em situações de risco de recaída. Recomenda-se que a prática de mindfulness seja utilizada como coadjuvante no tratamento dos dependentes de crack, e que mais pesquisas sejam feitas a este respeito.