Rede Unida, 10º Congresso Internacional da Rede Unida


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Andarilhos na busca pela integralidade do cuidado em saúde: a experiência de um Consultório de Rua
Ana Lucia Valdez Valdez Poletto, Mário Francis Petry Petry Londero, Luiz Fernando Silva Silva Bilibio, Claudia dos Santos dos Santos de Sá, Milene Calderaro Calderaro Martins

Resumo


A partir do Plano Emergencial de Ampliação do Acesso ao Tratamento e Prevenção em Álcool e outras Drogas (Pead 2009-2010, Portaria/MS n° 1.190 de 2009), o Consultório de Rua (CR) “Pintando Saúde” do Grupo Hospitalar Conceição se instalou como um serviço inédito no Rio Grande do Sul em 2010. Tal serviço atende a população em situação de rua numa determinada região da cidade de Porto Alegre. Em sua proposta busca produzir um cuidado centrado nas demandas dos sujeitos a partir da escuta qualificada, construindo junto com os usuários projetos terapêuticos singulares ou coletivos a partir da proposta de Clínica Ampliada proposta pela Política Nacional de Humanização. Uma dimensão importante dessa produção de cuidado é acolher a demanda relativa ao uso prejudicial de drogas. O CR acompanha sujeitos e coletivos a partir de suas singularidades na intenção de promover e construir conjuntamente o cuidado integral em saúde na perspectiva da redução de danos. Em sua prática, tenta “minimizar as consequências adversas do consumo de drogas do ponto de vista da saúde e dos seus aspectos sociais e econômicos sem, necessariamente, reduzir esse consumo” (WODAK & SAUNDERS, 1995). Além disso, a partir de um trabalho em rede que percorre a cidade, visa fortalecer os fatores de proteção e reduzir riscos em diferentes contextos em que as intervenções ocorrem diante de pactuações de cuidado junto ao usuário acolhido.Essa clínica em movimento que trafega no entre da cidade transita pelas ruas, se passa nas praças, parques, matagais, casas, serviços de saúde, assistência social, dentre outros aparelhos especializados ou não que colocam em foco uma rede intersetorial que tenta contemplar as demandas dos usuários surgidas em ato no cotidiano de trabalho. Nesse sentido, essa intervenção clínica se faz como prática andarilha complexa e singular, acompanhando os territórios existenciais dos moradores de rua e suas possíveis invenções de cuidado em saúde.Ao transitar e experimentar tal prática clínicaa necessidade de produzir saberes mestiços que deem conta da integralidade da atenção voltada para a população em situação de rua, obtendo com isso, conhecimentos transversalizados que problematizam práticas disciplinares na assistência em saúde. Atuando dessa forma em seu cotidiano de trabalho, tanto os trabalhadores do CR quanto os demais trabalhadores da rede intersetorial que são solicitados no cuidado, se veem tensionados por uma prática clínica aberta a outros horizontes daqueles delimitados tradicionalmente pelas disciplinas de saúde. Assim, há uma problematização dos parâmetros até então usados para o cuidado em saúde, deslocando as práticas clínicas e exigindo a educação permanente dos trabalhadores e demais atores sociais que participam da construção do Sistema Único de Saúde (SUS) e de outras políticas públicas inclusivas. Nos ambientes que o CR percorre em sua proposta de cuidado, se produz um “esfumaçamento dos limites das atribuições específicas a cada disciplina ou profissão, diversificando e estendendo os espaços de atuação de cada profissional e criando regiões novas de saber no intercruzamento das diversas disciplinas” (PALOMBINI, 2004, p.24). Para, além disso, Ceccim (2004, p.260) problematiza a formação profissional do trabalhador da saúde ao comentar o quanto a produção de um “percurso científico-curricular” que estria o cuidado em saúde em várias disciplinas, constitui uma maneira “compartimentada e parcialista” que não atende as demandas singulares e integrais do usuário do SUS. Tal normativa de aprendizagem instituída na maioria das formações em saúde produz um tipo de atendimento no qual existe um “eixo corporativo-centrado”, rivalizando as práticas de cuidado da equipe ao invés de permitir composições para o bem estar do cidadão em padecimento, ou seja, “a responsabilidade pelos atos de saúde pertence a cada profissional individualmente identificado com cada ação prestada ao usuário” (CECCIM, 2004, p.270). Em contra-ponto a essa formação, Ceccim (2004, p. 270) sugere um atendimento “usuário-centrado”, no qual a responsabilização pelo cuidado se passa na construção de um projeto terapêutico em ato, com uma escuta dos profissionais em consonância com a problemática do usuário em questão que, também, se encontraria implicado no seu próprio processo de produção de saúde.Nessa perspectiva do cuidado usuário-centrado surge a ética entre-disciplinar, isto é, “uma prática mestiça capaz de escapar ao limite disciplinar das profissões e de se expor à alteridade (sem hierarquizações e divisões técnicas ou sociais) com os usuários e com a equipe de saúde” (CECCIM, 2004, p.261). Como nos aponta Vasconcelos e Pasche (2008, p.535), a “integralidade pressupõe considerar as várias dimensões do processo de saúde-doença que afetam os indivíduos e as coletividades, e para a rede de saúde como um todo poder acolher tamanha demanda singular de cada usuário parece-nos necessário uma produção de cuidado que fizesse zona com a entre-disciplinaridade. No caso, seria uma atuação em trânsito, em movimentos de composição que excedam os saberes disciplinarizados, jogando-os para uma zona mestiça, “de fronteira, uma margem virtual no entre, sítio de tensão e de indiscernimento, mas de aprendizagem e de invenção” (CECCIM, 2004, p.265).Para finalizar, a partir das experiências do CR, fica claro o desafio que a rede de saúde tem em construir serviços que alcancem aqueles que vivem nas ruas em uma perspectiva que contemple os princípios da universalidade, da integralidade e da equidade. Há de se repensar as formas tradicionais de cuidado centradas nas competências disciplinares, implicando a produção de outros modos de atenção, no qual uma ética entre-disciplinar mostra-se como uma potente forma de realizar um cuidado que se passa na rua. Da mesma forma, essa prática centrada no usuário possibilita uma espécie de provocação junto aos trabalhadores de saúde, pois, necessitam planejar e desenvolver políticas públicas em conjunto com os usuários, a partir de uma escuta singular sobre o modo andarilho que a população em situação de rua vem percorrendo suas vidas. REFERÊNCIAS CECCIM, Ricardo Burg. Equipe de Saúde: a Perspectiva Entre-Disciplinar na Produção dos Atos Terapêuticos. In Cuidado: as fronteiras da integralidade. Roseni Pinheiro e Ruben Araujo de Mattos, organizadores. Rio de Janeiro: Hucitec: ABRASCO, 2004, 320p.PALOMBINI, Analice de Lima [ET AL.]. Acompanhamento terapêutico na rede pública: a clínica em movimento. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2004.VASCONCELOS, Cipriano Maia de & PASCHE, Dário Frederico. O sistema único de saúde. In: Campos G. W. de S. ET AL (orgs.). Tratado de saúde coletiva. Segunda edição – São Paulo: HUCITEC ; Rio de Janeiro, Ed. FIOCRUS, 2008.WODAK, A. & SAUNDERS, B. Harm Reduction Means What I Choose it to Mean. In Drug & Alcohol Review, 1995, 14: 3, 269-271.