Rede Unida, 10º Congresso Internacional da Rede Unida


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DE JOÃO A JOSÉ OU DA DESCRENÇA À ESPERANÇA: O CUIDADO DO USUÁRIO DE ÁLCOOL GRAVE PELA ESTRATÉGIA DE SAÚDE DA FAMÍLIA
Renata Ferreira Cerqueira, Berenice Ribeiro, Anderson Santana Oliveira, Dilma Borba, Jansen Xavier Fernandes, Helena Pereira Reis, Sandra Fortes

Resumo


Caracterização: Relato dos mitos e representações observados e transformados com a experiência do Programa de Educação Tutorial Saúde Mental do Ministério da Saúde com a ESF da comunidade da Casa Branca, localizada no bairro da Tijuca, município do Rio de Janeiro, no ano de 2011, no cuidado a usuários de álcool. Descrição: O PET-SM/UERJ é composto por docentes e discentes de serviço social, medicina e psicologia, além de profissionais do Centro de Atenção Psicossocial UERJ, Centro de Atenção Psicossocial em Álcool e Drogas Mané Garrincha e matriciadores da AP2.2 e FCM/UERJ. A Estratégia de Saúde da Família da Comunidade do Casa Branca oferece serviços de saúde aquela população adscrita, realiza visitas domiciliares de agentes comunitários de saúde, de médicos e de enfermeiros, consultas médicas e de enfermagem. Objetivos: Refletir sobre as mudanças percebidas na forma como os profissionais da equipe da ESF encaram o cuidado ao alcoolista grave. O método de pesquisa foi a observação participante, registrada através de diário de campo dos alunos e o grupo focal, realizado com a equipe da ESF antes do início do trabalho de campo. Iniciamos os contatos com a Equipe da ESF e com a comunidade em agosto de 2011. Partimos do levantamento de 85 casos realizado pelos Agentes Comunitários de Saúde (ACS), os quais elaboraram alguns critérios para o encaminamento: pessoas que eles consideravam ter problemas relacionados ao uso de álcool, afastadas dos atendimentos da ESF. Ao primeiro contato com a equipe da ESF seguiu-se a discussão onde foram abordados o descrédito e a desesperança quanto à possibilidade de cuidado a estes pacientes. De início observou-se certa resistência à abordagem dos casos mais difíceis, considerados como “sem solução”. Procedeu-se a busca ativa, com visitas domiciliares com os ACS, consultas conjuntas e discussão de casos com enfermeiro ou médico da ESF, reforçando a responsabilidade e a referência da equipe da ESF. Começaram a ser atendendidos os casos considerados mais graves clinicamente. Os instrumentos utilizados foram a capacitação da equipe técnica para diagnóstico e medicação, a aplicação da técnica de entrevista motivacional, além do uso do questionário para o teste AUDIT (Teste para identificação de problemas relacionados ao álcool). Efeitos alcançados: Diante dos primeiros casos de desintoxicação alcoólica realizados na comunidade, observamos a modificação da descrença tanto dos ACS quanto da equipe sobre a possibilidade de tratamento dessas pessoas. Verificou-se que muitos dos casos não chegavam a se configurar como dependência alcoólica e sim relacionados a questões existenciais, de solidão, de ausência de recursos que reforcem os laços sociais.Por outro lado, em relação aos casos de franca dependência alcoólica, destaca-se a importância dos familiares como apoio para o cuidado dos pacientes mais graves, cuja aliança com a ESF é fundamental para o empoderamento desta. A concomitância de outras situações graves, tais como comprometimento clínico, desemprego e desamparo psicossocial, revelou-se muito alta, sendo um importante aspecto nas dificuldades verificadas pelo matriciamento pela equipe do PET-SM. Alguns casos foram considerados emblemáticos durante o trabalho do PET, não pela total abstinência ao álcool pelo paciente, mas pela capacidade resolutiva da equipe de ESF. O primeiro caso trata-se de um homem de 34 anos com uso crônico de álcool e foi encaminhado para avaliação pela ACS. Apresentava dificuldade de deambulação, alterações nos exames de bioquímica e não tinha juízo crítico do seu estado de saúde, que inspirava cuidados, além dos efeitos sociais provocados pelo uso contínuo de bebida: desempregado, sem acesso a nenhum benefício social, afastado dos filhos. A família e a equipe de ACS´s estavam descrentes de qualquer sucesso na abordagem. Tentamos inserí-lo na rede de atenção psicossocial ao encaminhá-lo para o CAPS ad mas o paciente não tinha condições materiais para chegar ao serviço. Agendamos atendimento para a equipe da ESF e foi iniciada a desintoxicação por medicação. A partir dos atendimentos e da busca ativa ao paciente, a família entendeu a importância da medicação e passou a oferecê-la ao paciente. A médio prazo a família relatou que o paciente reduziu consideravelmente a ingestão de bebida alcoólica e reconhecendo a sua eficácia, passou a buscar a medicação no posto. O segundo caso trata-se de um homem de 51 anos, com longa história de uso de álcool, sem noção de doença, desempregado, sem fonte de renda. Estava há muito tempo tentando erguer sua nova moradia, pois a antiga estava em péssimas condições e apresentava risco de desabar. Ao ser abordado referiu vontade de parar de beber e foi proposta a desintoxicação. O paciente concordou e experimentou um período bastante produtivo: conseguiu erguer a casa e se mudou com a família. A esposa do paciente refere que houve diminuição considerável do uso de álcool. O paciente e sua família continuam sendo acompanhados pela equipe da ESF e pelo matriciamento. Recomendações: A equipe se mostrou mais esperançosa e confiante e ampliou-se a indicação de novos usuários para desintoxicação alcoólica e para referenciá-lo novamente à equipe de saúde. Vale ressaltar que as equipes de ESF são desafiadas diariamente por situações diversas, que envolvem questões clínicas e sociais. Ao mesmo tempo que percebemos a importância de investir no cuidado de pessoas em grave risco psicossocial: os casos que acompanhamos até agora eram vistos pelas equipes e talvez pela própria comunidade como “casos perdidos”, inacessíveis, de difícil adesão devido ao histórico familiar de morte em consequência da dependência à bebida. À equipe de ESF ao lidar com as frustrações representadas pelas recaídas, pelos episódios de sintomatologia psiquiátrica, exige maior atenção e orientação da equipe de matriciadores. Por conta disso o trabalho de matriciamento que se instituiu será contínuo, permanente. Os estudantes de graduação tiveram a oportunidade de interagir com acadêmicos e profissionais de outras áreas na perspectiva do trabalho interdisciplinar, através da tomada de responsabilidade do território abrangendo as dificuldades e as potencialidades que são evidenciadas no trabalho em rede. Percebemos ainda na população atingida pelo estudo a satisfação de serem lembrados, cuidados, ressaltando ainda que se trata de um público afastado de qualquer relação de autocuidado. Por serem casos que necessitam de maior contato com a equipe de saúde, implica na necessidade de um cuidado integral, realizado através de articulações da rede de saúde (internação, atenção especializada) e de assistência (documentos, trabalho e/ou renda). Acreditamos na importância do trabalho integrado (rede e matriciamento) para empoderar a equipe na produção de cuidado e construção de projetos terapêuticos, apesar dos vários fatores sócio-culturais que interferem no trabalho da ESF e que merecem investigação e atenção mais aprofundada para um efetivo cuidado às pessoas que atendemos e acompanhamos.