Rede Unida, 10º Congresso Internacional da Rede Unida


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Estratégia de Saúde da Família como Protagonista na Implantação da Reforma Psiquiátrica no Morro da Cruz em Porto Alegre-RS
Thais Maranhão, Pedro Soares Sanchez, Lenise Dias, Iarema Jenisch Mendonça, Paulo Ricardo Ramos da Silva

Resumo


O processo de implantação da Reforma Psiquiátrica exige reformulação de serviços e práticas de saúde. Após anos de exclusividade das instituições asilares como locais para o tratamento de doenças mentais, novos dispositivos de atenção à saúde foram criados para desinstitucionalizar o cuidado às pessoas com sofrimento psíquico. O movimento da Reforma Psiquiátrica desencadeou a mudança do “tratamento” para o “cuidado”. Nesse sentido, a atenção básica pode contribuir nas diversas dimensões que envolvem o cuidado a estas pessoas possibilitando a manutenção de seus vínculos com sua família e comunidade. O Morro da Cruz é uma vila (favela), com cerca de 35 mil habitantes, localizada em uma região de grande vulnerabilidade social em Porto Alegre, e conhecido por iniciativas de mobilização social e grupos de geração de renda e economia solidária. A rede pública de equipamentos sociais (saúde, educação e assistência social) é insuficiente frente ás demandas da população. Atualmente, esta comunidade possui em seu território oito equipes de Estratégia de Saúde da Família, incompletas por falta de Agentes Comunitário de Saúde e Médicos, em 3 Unidades de Saúde da Família (USF) distribuídas pelo Morro. Possui ainda duas escolas de ensino fundamental, duas creches comunitárias, uma escola para turno inverso (SASE) e uma biblioteca comunitária. Uma característica importante no perfil de adoecimento dessa comunidade é seu grande número de pessoas com sofrimento psíquico grave. Assim, muitos usuários viviam a realidade de recorrentes internações psiquiátricas e experienciavam o isolamento em leitos psiquiátricos quando estava em crise, ou ainda o isolamento social dentro de suas casas, mantido pelo preconceito familiar e social que sofriam. Há dois anos, as duas USF localizadas no alto do Morro da Cruz vêm desenvolvendo oficinas terapêuticas para o cuidado destas pessoas. Os usuários destas oficinas nomearam-na como Grupo da Alegria e encontram-se semanalmente na biblioteca comunitária juntamente com equipe multiprofissional que facilita as atividades. Esta é formada por terapeuta ocupacional, responsável por matriciamento em saúde mental nas USFs, assim como por enfermeiras, técnicos de enfermagem, auxiliar de consultório dentário das equipes das USF. Ainda participam das oficinas residentes multiprofissionais da Escola de Saúde Pública, ênfase atenção básica, com formação em psicologia, enfermagem e odontologia. Atualmente temos 21 usuários que fazem parte do grupo, tendo em média 14 usuários por oficina. Entre as ações desenvolvidas, estão atividades manuais, cênicas, leituras de poesias e excursões pela cidade, criadas a partir do interesse dos usuários. Realizamos um planejamento mensal em conjunto com estes e buscamos efetivar tecnologias de cuidado complexas e variadas através da diversidade de atividades desenvolvidas nas oficinas e sempre contextualizadas com a vida dos usuários e, preferencialmente de forma intersetorial. Um exemplo significativo desta proposta foi a realização de um bloco de carnaval, no ano de 2011, quando criamos as máscaras e objetos decorativos em uma oficina e, na seguinte, fizemos o bloco juntamente com familiares, grupo de adolescentes e de percussão da comunidade; além do grupo de caminhada e profissionais de saúde das USFs que promoviam atividade de prevenção de DST/AIDS com distribuição de preservativos pelas ruas do morro. Assim, entendemos que uma visão ampliada do sujeito também é a que orienta as ações dos trabalhadores dessas equipes, pois são buscadas parcerias com as famílias dos participantes, associações, e outros coletivos. O contato com grupos externos, por sua vez, proporciona efeitos no coletivo, como o impacto sobre o preconceito existente em relação às pessoas com sofrimento psíquico. A circulação do grupo pela cidade e, neste caso, dentro da própria comunidade, assim como o aumento de autonomia de seus participantes, provocam pequenas fissuras em estereótipos há tempos construídos. Modificar esse cenário coloca esses sujeitos em outro lugar nas suas relações com o mundo. As atividades ocorrem em grupo, sem, contudo, deixar de reconhecer a necessidade de acertos sobre casos individuais, a dinâmica familiar e comunitária. Desta forma, ao longo do tempo percebemos a necessidade de investimento individual nos participantes através do desenvolvimento de Projetos Terapêuticos Singulares (PTS) de forma a ajudá-los além do que já era trabalhado nos momentos das oficinas grupais. A fim de possibilitar o trabalho com PTS, instituímos momentos de discussão de casos, em horário semanal anterior ao início do grupo. Um dos casos que analisamos para desenvolvimento do Projeto Terapêutico Singular foi o de um rapaz, com idade em torno de 35 anos, que vivia restrito ao pátio de sua casa saindo apenas para participar do Grupo da Alegria. Ao buscarmos informações com sua família deparamo-nos com dois problemas: a ausência de registro de nascimento, e consequentemente outros documentos e benefícios aos quais ele teria direito; e o preconceito de vizinhos, concretizado pela proibição de seus filhos conversarem com o rapaz. Para tanto, elaboramos um PTS que buscasse resolver estes dois problemas. Foram necessárias diversas articulações com órgãos de registro civil, cartórios, além da assistencia social da rede da cidade para que a situação fosse resolvida. Quanto ao segundo problema, ainda em processo de execução, procuramos conversar com família e vizinhos, para incentivar uma maior socialização deste usuário na comunidade, por meio de momentos fora de casa e passeios. Outra experiência significante para o grupo, através do PTS, foi o despertar de algumas usuárias para o desejo de se alfabetizar. O contato semanal com a biblioteca comunitária e a possibilidade de inserção nas aulas de alfabetização permitiram a ampliação da autonomia destas pessoas no seu cuidado com a saúde, e enriqueceram sua leitura do mundo a partir do domínio da leitura da palavra. Assim, propiciar outro lugar subjetivo aos portadores de sofrimento psíquico constrói um ponto de conexão entre as ações que percebemos no cotidiano, fruto da Reforma Sanitária, com a Reforma Psiquiátrica. Estas compartilham importantes valores, como o reconhecimento do protagonismo dos trabalhadores e usuários na gestão e construção de tecnologias de cuidado. O Grupo da Alegria promove isso através de suas práticas a partir do território vivido e das necessidades e aspirações percebidas. Por fim, acreditamos que contribuímos no cotidiano da implantação da Reforma Psiquiátrica através da ampliação da autonomia, inclusão social e exercício de cidadania destes usuários. O desafio colocado para a atenção à saúde mental a partir da Atenção Básica é, portanto, incrementar a saúde, sem caminhar em direção à institucionalização.