Rede Unida, 10º Congresso Internacional da Rede Unida


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DISCUTINDO A FORMAÇÃO DOS PROFISSIONAIS DE SAÚDE COM O ENSINO NO SERVIÇO
Ramona Ceriotti Toassi, Alexandre Baumgarten, Cristine Maria Warmling, Eloá Rossoni, Arisson Rocha da Rosa, Sonia Maria Blauth Slavutzky

Resumo


Introdução O ensino superior brasileiro na área da saúde caracterizou-se, historicamente, pela centralização na formação técnica e individualista, com dificuldade para criar e universalizar soluções adequadas à realidade social, priorizando práticas pedagógicas que pouco contribuiam ao desenvolvimento de uma sociedade de sujeitos sociais construtores de sua própria história (MASETTO, 1998; ALMEIDA; ALVES; LEITE, 2010). Esse quadro também marcou os cursos de graduação em Odontologia do Brasil, pois as faculdades apresentam currículos considerados inadequados para a realidade econômica e social do país, seguindo uma tendência de padrões curriculares fragmentados dentro da própria instituição, cabendo ao estudante a integração dos conteúdos, os quais enfatizam os conhecimentos das ciências básicas e as técnicas operatórias, mas são limitados quanto aos aspectos preventivos e de saúde coletiva (CHAPPER et al., 2007; DITTERICH; PORTERO; SCHMIDT, 2007). Da mesma forma, esse modelo tradicional de Odontologia fragmentado, desarticulado, tecnicista, positivista e baseado na neutralidade científica, constituiu também a matriz curricular na formação de seus docentes (TOASSI, 2008; FINKLER; CAETANO; RAMOS, 2011). Opostamente a isso, as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) estabelecidas para os cursos de graduação na saúde, incluindo a Odontologia (BRASIL, 2002), reorientaram o processo de formação em busca de um novo perfil profissional a ser formado no Brasil e enunciaram habilidades e competências que deveriam ser desenvolvidas pelo cirurgião-dentista. As DCN sinalizaram para uma mudança paradigmática na formação de um profissional crítico, capaz de aprender a aprender, de trabalhar em equipe, e de levar em conta a realidade social. A formação do cirurgião-dentista passou a contemplar o sistema de saúde vigente no país, a atenção da saúde num sistema regionalizado e hierarquizado de referência e contra-referência (MORITA; HADDAD, 2008; SALIBA et al., 2009). Com as DCN, o desafio passou a ser a formação de um profissional comprometido com a visão ampliada sobre o objeto da prática do cirurgião-dentista como coletivo, em contexto de determinação social da saúde, capaz de entender os usuários, levando em consideração os vários aspectos de sua vida, condicionantes de saúde e não apenas um conjunto de sinais e sintomas restritos à saúde bucal (EMMERICH; CASTIEL, 2009). Especificamente sobre os estágios curriculares, o artigo 7o das DCN asseverou o desenvolvimento dos mesmos de forma articulada, com complexidade crescente ao longo do processo de formação do cirurgião-dentista e sob supervisão docente (BRASIL, 2002). O conceito desse estágio para a Odontologia, consonante às orientações das DCN, pode ser descrito como o instrumento de integração e conhecimento do estudante com a realidade social e econômica de sua região e do trabalho de sua área. O estágio curricular, nesse processo de mudança, tem o objetivo de fomentar a relação ensino e serviços, ampliar as relações da Universidade com a sociedade e colocar o futuro profissional em contato com as diversas realidades sociais (CARVALHO, 2005). Ao se deslocar para um ambiente externo, que extrapola os limites físicos da Universidade, o estudante tem a oportunidade de vivenciar uma transformação no seu papel social e se coloca frente aos desafios dos problemas da população que cuida e do mundo do trabalho (WERNECK et al., 2010). Assim, a conformação dos estágios curriculares junto ao serviço possibilita ao estudante o trabalho com problemas reais, assumindo responsabilidades crescentes como agente prestador de cuidados compatíveis com seu grau de autonomia (ARAÚJO; ZILBOVICIUS, 2006). O estágio curricular supervisionado na Faculdade de Odontologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (FO/UFRGS) iniciou no segundo semestre de 2006, no 8º semestre do curso, com uma carga horária de 12 horas/semanais, 12 créditos, tendo 8 horas de atividades extramuros. No primeiro semestre de 2009, com a reestruturação curricular (UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL, 2005), o estágio passou a acontecer no 9º semestre do curso, sendo dividido em três módulos. O módulo da atenção primária correspondia a 33 horas/semanais. Cada estudante deveria cumprir seis turnos semanais de atividades práticas em Unidades Básicas de Saúde/Saúde da Família do município de Porto Alegre, por três meses. No segundo semestre de 2009, ainda em processo de construção, o estágio sofreu as primeiras modificações. Por uma necessidade apontada pelo serviço e pelos próprios estudantes, passou a ser semestral e não mais dividido em módulos (carga horária de 465 horas, 31 créditos), ficando o estudante cinco turnos no serviço (momento de dispersão), um turno em atividade teórica em sala de aula (momento de concentração) e mais um turno adicional de orientação dirigida com o professor tutor (momento de concentração). A proposta de trabalho envolve a necessidade de refletir criticamente sobre as questões do trabalho nos serviços de saúde dentro de uma base pedagógica de problematização. As atividades abrangem três campos principais de atuação em saúde: Planejamento, Educação/Promoção de Saúde e Assistência. Os cenários de prática do estágio são Unidades de Saúde/Saúde da Família do município de Porto Alegre. Cada local de estágio recebe até dois estudantes por semestre. O preceptor no serviço é o cirurgião-dentista responsável por acompanhar e orientar os estudantes. Além do preceptor, alguns locais têm residentes de Odontologia que também acompanham o estudante no período. Ao final do estágio, uma discussão coletiva acontece entre professores, estudantes e preceptores/residentes, apontando as fortalezas e fragilidades observadas dentro da complexidade dos serviços, avaliando, assim, o processo e já pensando na construção do mesmo para o próximo semestre (UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL, 2010). Oportunizar a abertura para a escuta e atuar de forma dialógica ao entrar em contato com essa complexidade que envolve o ensino e o trabalho constitui um grande desafio na formação e capacitação de recursos humanos na área da saúde. Objetivo Avaliar o papel do estágio curricular supervisionado na atenção primária/Estratégia Saúde da Família na formação do cirurgião-dentista em uma Universidade Federal no Sul do Brasil. Dentro desta temática, foi verificada a perspectiva dos estudantes do curso de Odontologia, dos cirurgiões-dentistas preceptores nos serviços de saúde e dos professores acerca do estágio. A intenção que o moveu foi a de contribuir para o avanço da discussão sobre o tema nesta e em outras Instituições de Ensino Superior (IES). Método Pesquisa qualitativa, modalidade estudo de caso (MINAYO, 2007; ESTEBAN, 2010; YIN, 2010), cujo campo de investigação foi a Faculdade de Odontologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (FO/UFRGS), mais especificamente o estágio curricular supervisionado nos serviços de atenção primária/ Estratégia Saúde da Família. A coleta de dados aconteceu por meio de entrevista semiestruturada e observação participante (ROSA; ARNOLDI, 2008; FLICK, 2009). As entrevistas foram realizadas por um único pesquisador, seguindo um roteiro pré-testado, de forma individual, gravadas por equipamento de áudio e transcritas na íntegra. Todas as transcrições foram devolvidas aos entrevistados para que pudessem lê-las, verificando se estavam de acordo com as idéias apresentadas e, se julgassem necessário, complementassem seus depoimentos. Já a observação participante incluiu os estudantes (em sala de aula e nos locais de estágio), os professores (nas reuniões semanais do estágio e em conversas informais) e os preceptores (nos locais de estágio). Os sujeitos dessa pesquisa foram escolhidos de modo intencional levando em consideração o objetivo proposto. Ao final, 21 sujeitos participaram da pesquisa, sendo 12 estudantes do curso de graduação em Odontologia, 6 preceptores (cirurgiões-dentistas) que atuavam nos serviços de saúde de Porto Alegre/RS e 3 professores da Faculdade de Odontologia vinculados ao estágio curricular. O critério para seleção dos preceptores e professores foi estarem atuando no estágio por um período mínimo de dois semestres (um ano). O método de amostragem utilizado foi o da saturação, ou seja, quando se entendeu que novas falas passaram a ter acréscimos pouco significativos em vista dos objetivos propostos pela pesquisa e tornaram-se repetitivas, a coleta de dados foi encerrada (STRAUSS; CORBIN, 2008; TURATO, 2008). Os dados coletados foram interpretados seguindo o método da análise de conteúdo de Bardin (2011). O estudo foi avaliado e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade (protocolo 18139). Resultados As DCN apresentaram para as Instituições de Ensino Superior, dentre outras mudanças, o desafio da formação em sintonia com o desenvolvimento do sistema de saúde e a preparação de profissionais aptos para atuar no Sistema Único de Saúde. Daí a importância da formação e do aprendizado nos serviços públicos de saúde e da integração ensino-serviço-comunidade, que constitui um dos eixos fundamentais nos processos de mudança no Ensino Superior em Odontologia e está cada vez mais presente no ensino da saúde (ALBUQUERQUE et al., 2008). A complexidade envolvida na integração ensino-serviço-comunidade e nas mudanças do processo de formação é expressa por Mello, Moysés e Moysés (2010) ao afirmarem que ainda que se assumam as dificuldades na realização das mudanças anunciadas no plano legal e discursivo, em relação à formação profissional, não parece possível produzir de modo efetivo a mudança pretendida sem interferir simultaneamente no mundo da formação e no mundo do trabalho. Na FO/UFRGS, o estágio curricular na atenção primária/Estratégia Saúde da Família (após reestruturação curricular), iniciou com a primeira turma em janeiro de 2009. Entendendo que processos de avaliação e compreensão envolvendo as mudanças curriculares podem melhorar a qualidade do ensino e a satisfação dos estudantes de Odontologia (CHAPPER et al., 2007), a visão do estágio na atenção primária foi discutida entre seus participantes (estudantes, professores e preceptores). Suas ideias, percepções, sentimentos e impressões foram analisados, categorizados e subcategorizados (categorias/subcategorias emergentes). Tratou-se não só de descrever os dados coletados, mas apreender o que eles revelavam, em um diálogo constante que incluiu objetividades e subjetividades. Emergiram da análise seis categorias: o estudante e o imaginário sobre o serviço; a intenção do fazer odontológico e do ganho de autonomia clínica; a chegada do estudante ao serviço: a surpresa com o cenário de aprendizagem; o cuidado ou a falta do cuidado em saúde e a culpabilização do paciente; o cuidado: um novo olhar para além da tecnificação do ato odontológico; avanços e desafios da aprendizagem no serviço para a formação de profissionais da saúde. Ao iniciar o estágio, os estudantes de Odontologia mostraram uma apreensão diante do novo, do desconhecido e um sentimento de receio pela saída da Universidade. Suas percepções em relação às condições de trabalho que iriam encontrar no serviço foram marcadas por relatos ligados à precarização do trabalho no serviço público. Inicialmente, eu tive uma expectativa péssima. Imaginei que me “embrenharia” em uma vila com muita violência e pessoas mal educadas e que a estrutura dos postos de saúde seria péssima (Estudante 8). [...] a gente tem a visão popular, ‘o posto é cheio de filas, longe’ (Estudante 20). A expectativa inicial dos estudantes em relação ao ‘o que fazer’ no período do estágio evidenciou a intenção do ganho de autonomia clínica e do ato odontológico voltado para a assistência de pacientes. [...] cheguei e queria um estágio onde eu trabalhasse bastante, clinicamente bastante... Queria isso daí. A idéia era pegar ritmo de trabalho, isso aí era o meu principal objetivo, o que eu esperava assim que acontecesse né? (Estudante 7). [...] expectativa de praticar muito mais, adquirir mais autonomia e, também, poder ter uma vivência maior fora da faculdade e das clínicas da faculdade (Estudante 9). Essa expectativa de ênfase no atendimento clínico foi percebida e relatada também pelos preceptores cirurgiões-dentistas e professores que acompanhavam os estudantes no período do estágio: [...] eles foram lá com uma proposta de atendimento, ser mais rápido em atendimento, ganhar autonomia clínica. [...] (Preceptor 11). [...] os alunos têm muito interesse em melhorar a prática, porque eles têm uma bagagem acumulada teórica e eles querem colocar aquilo na prática realmente, é como se fosse um teste e muitos acabam dizendo: ‘é um teste de fogo’, ‘eu agora sou dentista’, que realmente aqui, na faculdade, durante as clínicas, eles não conseguem desenvolver tanto essa autonomia (Professor 16). Tendo a possibilidade de serem responsáveis por todas as etapas do tratamento odontológico – desde o planejamento até a finalização – os estudantes vêem a oportunidade de executar o que foi aprendido e ‘treinado’ nos períodos anteriores da graduação, a prática clínica autônoma. A imagem do trabalho de um cirurgião-dentista ainda volta-se muito para o ambiente fechado de um consultório, realizando exclusivamente atividades clínicas. Essa representação é, muitas vezes, transmitida dentro das universidades por grande parte dos professores aos futuros profissionais, e, por conseqüência, é a imagem que aparece no imaginário das pessoas e que se consolidou como o papel social do cirurgião-dentista (GONÇALVES; RAMOS, 2010). Esse contexto pode sugerir uma justificativa para a expectativa de ênfase em atividades clínicas. Apesar dessa expectativa, quando conhecem o serviço, os estudantes se surpreendem positivamente com a estrutura física e com o trabalho desenvolvido na atenção primária. Estudantes e preceptores assim se manifestaram: [...] fiquei bem surpresa, não era o que eu esperava encontrar, eu imaginava aqueles da televisão, cheio de filas, de gente na sala de espera. E eu tinha medo de ser no meio da vila mesmo e eu ter que descer do ônibus e caminhar não sei quantas quadras pra atravessar a vila pra chegar na unidade, e não era assim, a parada do ônibus era exatamente na frente e o posto não tá dentro da vila, tá uma quadra pro lado, num bairro residencial de classe média (Estudante 21). [...] eles se surpreendem positivamente com o SUS, com o que eles podem ter na odontologia, no Sistema Único de Saúde, e geralmente eles não esperam que o sistema esteja tão organizado, que tenha boas condições de trabalho, eles vêm numa perspectiva de que as coisas não fossem tão boas, e de uma forma geral são alunos assim bem qualificados, tecnicamente, são alunos assim amadurecidos, que tem uma boa relação com a equipe, logo tem um bom entrosamento, de uma forma geral (Preceptor 13). Estudo realizado na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) avaliando a experiência do Internato Rural como estágio curricular supervisionado (SANTA-ROSA; VARGAS; FERREIRA, 2007) também verificou que uma das grandes surpresas dos estudantes foi a de encontrar um serviço público diferente do que esperavam. Ao contrário da visão caótica e desorganizada, os estudantes descreveram um serviço organizado, que funciona, atende a população e dispõe de equipamentos e materiais de qualidade na atenção primária. Ressalta-se que essa ‘surpresa’ não foi sentida pelos estudantes pertencentes ao grupo do Programa de Educação pelo Trabalho para a Saúde (PET-Saúde), os quais já tinham envolvimento com atividades voltadas ao processo de integração ensino-serviço antes do período do estágio curricular. Promovido pelo Ministério da Saúde, o PET-Saúde é uma ação nacional que busca formar grupos de aprendizagem tutorial em áreas estratégicas para o Sistema Único de Saúde (SUS) e integrar ensino, serviço e comunidade, caracterizando-se como instrumento para qualificação dos profissionais da saúde (BRASIL, 2010). Em relação ao cuidado com os pacientes, logo que chegava ao serviço de atenção primária/Estratégia Saúde da Família, ficou bastante evidente na fala dos preceptores a dificuldade do estudante de Odontologia em entender os usuários, levando em consideração os vários aspectos de sua vida que condicionam saúde e não apenas um conjunto
de sinais e sintomas restritos à boca. [...] Eles chegam: ‘tu não escovou? Ai, que nojo disso aqui!’ ‘Não veio, azar!’ É uma coisa bem assim, ‘não veio porque não quis, porque é fácil de marcar’. Tem uma coisa bem de culpar o paciente, de dizer ‘eu é que sei e vou transmitir para o paciente’, ‘eu mando escovar, mas ele não escova’ (Preceptor 10). Faccin, Sebold e Carcereri (2010) ao analisarem o processo de trabalho em saúde bucal na Estratégia Saúde da Família em um município da região sul do Brasil, verificaram que uma das percepções mais presentes nos discursos dos profissionais de saúde, é que as pessoas adotam comportamentos que não favorecem sua saúde, independente de ter ou não informações sobre cuidados de saúde bucal. A ideia da falta de cuidado com a saúde é vista como reflexo da cultura, entendida no sentido do estilo de vida ou de padrões de comportamento, fazendo uma imagem preconceituosa dos indivíduos que adoecem. Entende-se que as novas maneiras de organizar a prestação dos serviços e a formação em saúde precisam levar em consideração não somente as necessidades dos usuários, mas, além disso, também a compreensão do ser humano e do processo saúde-doença o que necessariamente exige uma abordagem multiprofissional na construção dos conhecimentos. Essa abordagem multiprofissional, segundo Albuquerque et al. (2009), implica em ultrapassar as fronteiras das disciplinas, que já são consideradas por excelência como espaços de refinamento, e promover a articulação dos processos de ensino-aprendizagem ao trabalho e à pesquisa. A vivência junto ao serviço de atenção primária/ Estratégia Saúde da Família, entendida como um cenário de aprendizagem significativa pode favorecer e potencializar tal abordagem. Nesse estudo, o que se verificou é que assim que conhecem o serviço, o funcionamento do processo de trabalho na atenção primária e a equipe de saúde, as impressões iniciais dos estudantes parecem que vão se modificando e eles se reconhecem como trabalhadores do sistema público de saúde, ampliando o olhar para além do gabinete odontológico e sugerindo maior compreensão da integralidade em saúde. Sentimentos de aprendizagem, convivência e ganho para além da formação acadêmica foram percebidos. Nesse período que fiquei lá aprendi muita coisa [...] é todo mundo trabalhando junto, convivendo junto, o sistema que tinha de posto de saúde, de reuniões periódicas, de equipe de acolhimento, isso era uma coisa que eu nunca tinha visto daquela forma de estruturação, sabia a teoria, já escutei falar, mas nunca tinha vivido e eu cresci muito com aquela experiência [...]. Foi além da odontologia: um ganho pessoal e profissional (Estudante 2). [...] a questão deles (os estudantes) poderem ser responsáveis pelas pessoas com as quais eles estão lidando, eu acho que isso é muito importante. O que parece impactar mais durante o estágio é o que os estudantes conseguem ver na prática, convivendo com a equipe, com as pessoas da comunidade, nas conversas, nesse cuidado diferenciado (Professor 19). O cuidado, nesse contexto, não se restringe apenas às competências e tarefas técnicas das práticas de saúde, mas deve, sim, ter um conceito expandido onde a presença do outro seja ativa e as interações intersubjetivas sejam ricas e dinâmicas (AYRES, 2004a). Entende-se cuidado como a “conformação humanizada do ato assistencial, distinguindo-a daquelas que, por razões diversas, não visam essa ampliação e flexibilização normativa na aplicação terapêutica das tecnociências da saúde” (AYRES, 2004b, p. 22). Os relatos mostraram que o aprendizado nos serviços de atenção primária favoreceu a aproximação dos estudantes com a realidade do trabalho, na qual poderão se inserir como futuros profissionais e oportunizou um espaço de reflexão crítica para a busca de soluções para os reais problemas de saúde apresentados. Acredita-se que a formação não pode tomar como referência apenas a busca eficiente de evidências ao diagnóstico, cuidado, tratamento, prognóstico, etiologia e profilaxia das doenças e agravos (CECCIM; FEUERWERKER, 2004). Deve da mesma forma, buscar o desenvolvimento de condições de atendimento às necessidades de saúde das pessoas e das populações, da gestão setorial e do controle social em saúde, redimensionando o desenvolvimento da autonomia das pessoas até a condição de influência na formulação de políticas do cuidado. O período do estágio, desse modo, pode ser considerado um momento decisivo para os futuros profissionais de saúde, já que possibilita a transformação do modo de pensar e agir dos estudantes (SILVA; SILVA; RAVALIA, 2009), os quais se deparam com sentimentos diferenciados e muitas vezes nunca experienciados. [...] eu saí do ambiente acadêmico e percebi a realidade mesmo. Foi um choque na realidade, mas eu fiquei com uma visão muito mais completa depois do estágio (Estudante 6). Morita e Haddad (2008) ao discutirem sobre a importância dos cenários de prática para a formação de profissionais capazes de atuar na atenção primária chamaram a atenção também para os benefícios potenciais da aprendizagem no serviço, no plano individual. Assim, o estudante teria o desenvolvimento do raciocínio crítico, das competências relacionais e de comunicação, o aumento da autoconfiança, a melhor compreensão dos determinantes sociais no processo saúde-doença e a formação cidadã, voltada para o cuidado em saúde das pessoas e da coletividade. Obviamente, esse processo de mudança na percepção em relação à produção do cuidado não é imediato e nem tampouco fácil para o estudante. É um processo difícil, complexo, não só para os estudantes, mas também para os preceptores, já que significa romper com as formas estruturadas de trabalho e encontrar o mundo como ele é, ou seja, caótico, dinâmico, mas potente nas singularidades que se formam e na sinergia advinda dos encontros no processo de cuidado em saúde. Esse cuidado efetivo, repleto de encontros e afetos mútuos, apareceu relatado nos produtos das aprendizagens durante atividades coletivas (grupos), no acolhimento, no exercício de uma clínica ampliada mesmo em atendimentos individuais, nas reuniões do Conselho Local de Saúde, no trabalho em equipe e até nos momentos de tutoria. Corroborando estes resultados, a literatura aponta a influência positiva que a aprendizagem nos serviços públicos de saúde exerce sobre a formação em Odontologia, possibilitando a aproximação com a comunidade pela realização de atividades que vão além dos limites físicos da instituição formadora (SANTA-ROSA; VARGAS; FERREIRA, 2007; ARANTES et al., 2009; ASTON-BROWN et al., 2009; CAVALCANTI; CARTAXO; PADILHA, 2010; WERNECK et al., 2010). Os achados desse estudo confirmaram a importância e os ganhos da vivência dentro da realidade dos serviços de atenção primária/Estratégia Saúde da Família com o estágio curricular supervisionado para a formação do cirurgião-dentista. Os estudantes perceberam-se em um contexto de trabalho fora dos limites territoriais da faculdade. Aspectos relacionados ao entendimento sobre funcionamento do serviço, ao trabalho integrado em equipe multiprofissional e a autonomia/segurança/confiança clínica, foram observados no discurso dos estudantes. Eu tirei muitas coisas boas de lá, primeiro a experiência clínica, prática, rotina clínica que se fez muito lá, vivência em um posto de saúde, porque eu nunca tinha trabalhado em um posto de saúde. Trabalhei lá durante 4 meses. Nesse período que fiquei lá aprendi muita coisa [...] convivendo junto, o sistema que tinha de posto de saúde de reuniões periódicas de equipe, de acolhimento, isso era uma coisa que eu nunca tinha visto daquela forma de estruturação, sabia a teoria, já escutei falar, mas nunca tinha vivido e eu cresci muito com aquela experiência de aprender como eles fazem acolhimento, aprender reuniões periódicas, aprender que lá por ser um local que não possuia hierarquia, eles conseguiam distribuir as tarefas e trabalhar tranquilamente, se organizar e a prática, a convivência era muito bom (Estudante 2). Além disso, os estudantes referiram-se ao conhecimento da realidade social e do sentir-se preparado para o trabalho no SUS como aspectos importantes da experiência vivenciada, potencializando a capacidade reflexiva e de tomada de decisões na resolução de problemas. O estágio na atenção básica possibilitou eu visualizar um pouco da realidade dos brasileiros, tanto social quanto odontológica, possibilitou eu conhecer o sistema de saúde, o funcionamento de certas políticas e como que elas se refletem na população e possibilitou que eu, me deu mais bagagem pra mim fazer certas escolhas, pra mim (Estudante 7). [...] além de contribuir na questão prática do atendimento odontológico, fazendo com que eu adquirisse maior autonomia, confiança e ritmo de trabalho, me ajudou a desenvolver um lado reflexivo importante para minha formação como cirurgiã-dentista, além de me mostrar [...] condições de trabalho e funcionamento muito melhores do que as que eu esperava encontrar na atenção básica antes de ter esse contato (Estudante 9). Pelo texto das DCN para os cursos de graduação em Odontologia, artigo 4º, o cirurgião-dentista deveria ser capaz de tomar decisões, pensar criticamente, analisar os problemas da sociedade e de procurar soluções para os mesmos (BRASIL, 2002). O estágio, nessa perspectiva, pode facilitar o desenvolvimento dessas competências e habilidades recomendadas pelas DCN. [...] nessa proposta de ampliação da carga horária no serviço eles conseguem ter uma visão melhor do que é o serviço, do que é a atenção primária, eles participam de outros espaços, tem uma convivência maior com a equipe, conseguem fazer parte da equipe, e não ser só uma “coisa” assim que vem de vez em quando e ninguém sabe bem quem é. Esses alunos do currículo novo já fazem parte da equipe, eles ficam mais tempo, eles agregam, trazem coisas, participam dos grupos, acolhimento; então, é bem melhor, faz bastante diferença (Preceptor 10). Os alunos são chamados a dar opinião, [...] eu acho que o que acrescenta mesmo pra eles, o grande diferencial, é justamente isso, eu acho que eles têm um crescimento como profissional nesse sentido, como cidadão, como um profissional responsável por outras coisas e não só o atendimento clínico, responsável por todo o processo de trabalho, pelo bom funcionamento da unidade, por uma boa relação com os usuários, então eu acho que esse acréscimo é importante, eles crescem nesse sentido (Preceptor 13). Então o papel do estágio [..] vai além do aluno dentro do serviço. O que parece impactar mais durante o estágio é o que os estudantes conseguem ver na prática, convivendo com a equipe, nas conversas, nesse cuidado diferenciado (Professor 18). É um ganho que não se restringe à formação do profissional de saúde, mas que pode ser percebido dentro do próprio serviço, para o profissional, para a equipe, para a comunidade que recebe esses estudantes, professores da Universidade e que foi reconhecida pelos preceptores: Não tem como dizer quem mais ganha com o estágio, eu acho que todos ganham, porque o profissional que está ali, que está com uma pessoa, pode estar sendo provocado no sentido positivo, a equipe, a comunidade ganha com isso, também tu vai estar preparando melhor u