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Medicina tradicional – estudo com mulheres xamã que usam o cachimbo em seu trabalho de cura
Resumo
Este trabalho apresenta meus estudos de doutorado, abordando medicina tradicional, a partir de estudos com mulheres guarani, que utilizam o cachimbo (petyguá) em seus rituais de cura e reza. Quando estudamos as culturas nativas (e aqui mais profundamente o povo guarani do Rio Grande do Sul/Brasil) sempre que se fala em saúde, ela está relacionada à educação, a natureza, a sustentabilidade, a maneira de ser – Ñanderekó (jeito de ser guarani). Não existe separatividade, e através de um trabalho etnográfico, convivendo por algum tempo com esse povo, foi possível ter um entendimento um pouco mais aprofundado dessa questão, além das bibliografias estudadas até o momento. E para buscar este universo do xamanismo, além de focar os estudos com essa etnia, busco o olhar (mirar) a partir das mulheres xamã, no caso as kunhã karaí, uma vez que pouco se sabe, se estuda e se escreve sobre elas. Como se tornaram kunhã karaí, como aprenderam e com quem aprenderam, o que é educação, o que é saúde, o que é cura, o que é o cachimbo. Perguntas que estão presentes nos momentos de orações, nos momentos de observação e nos momentos de reza. Perguntas que, com certeza, não são respondidas com palavras e sim com atos, com movimentos, com olhares.O contato com o “branco” geralmente é feito pelos homens, ficando às mulheres o papel da casa, das plantas, do cuidado dos filhos. O fato de eu ser mulher, também trabalhar com cura e espiritualidade, ser um pouco mais velha, facilitou-me a ligação com algumas dessas mulheres. Acredito serem os conhecimentos, trazidos pelas culturas nativas, um caminho que pode nos acenar para uma nova perspectiva de re-conhecimento do mundo, da terra, dos segredos do universo. Um espaço aberto, sem sectarismos, com respeito a todas as criaturas, um espaço de vivências de aprendizados, de educação, de saúde, de conhecer e ser conhecido. Como meu estudo envolve histórias de vida de mulheres, e como elas são da etnia Guarani, considero importante conhecer um pouco mais desse povo. Na cosmologia Mbya Guarani, o centro de tudo é a Opy, a casa de reza. E eles vivem com o propósito de manter o seu jeito de ser: Ñanderekó Para o povo guarani Ñanderekó, ou “nosso costume”, no qual tem fundamental importância as Belas Palavras, expressas nos mitos e nos cantos sagrados, o sistema xamânico-cosmológico, o aguyje – “estado de totalidade acabada”, de perfeição espiritual-religiosa, que é buscado constantemente, e o tapejá – o ser caminhante guarani que procura na Terra sem Mal, sob a liderança dos karaí e durante a vida terrena, o reencontro com a divindade e a imortalidade perdidas. A base da sociedade ideal se sustenta nos conhecimentos, nas palavras e nas práticas do Karai/Xamã e reside na grande dificuldade e, tantas vezes, remota possibilidade do “homem civilizado” entender, aceitar e respeitar esse modo, esse jeito, essa forma de viver nativa. E como ele não aceita, ele reprime, desqualifica e, muitas vezes, criminaliza essa maneira de ser. E se pensarmos no atendimento de saúde, muito precisa se avançar para que haja um total respeito aos seus conhecimentos tradicionais de cura. Cachimbos, Tabaco, Fumaça, Belas Palavras Não são todas as tradições nativas que utilizam o cachimbo como ferramenta de reza, mas meus estudos ocorrem com algumas que o fazem por considerar o significado simbólico do mesmo, que integra os quatro elementos e demonstra a humildade e submissão do homem em relação a tudo o que é sagrado. O tabaco sempre foi utilizado por quase todos os povos nativos como forma de reza, sendo sua fumaça, representativa do elemento ar, utilizada para levar as orações aos deuses. Dentre as etnias do Rio Grande do Sul, os Guarani são os únicos que utilizam o cachimbo (denominado petygua) em seus rituais de Cura. Eles são utilizados para ligarem o homem às divindades, e por isto possuem um significado mais profundo do que outros adornos ou objetos confeccionados pelos povos ameríndios. Os ensinamentos passados pelos mais velhos aos mais novos, a importância das palavras: “o pensamento é algo como o vazio, uma oração que leva a pessoa para um outro estado. Hyral comenta que: ‘se a gente pega o petygua e está pensando em outra coisa, ai não tem força". José Cirilo Morinico (Kuaray Nheery) (Souza et. all, 2009, p.37) afirma que para se tomar o chimarrão é preciso respeitar a erva-mate, “não pode ir pegando, tem que rezar primeiro”. E o mesmo procedimento para o cachimbo: “ele é nossa arma, fazemos cura, proteção. A fumaça afasta o espírito mau”. Diversos estudos com os Guarani abordam a importância da “palavra”, as “Belas Palavras”. Nas reuniões tradicionais (nhemboaty) todos permanecem em círculo para escutar a fala dos presentes. Ayvu designa a forma de oralidade, característica do povo Guarani. O discurso é ritmado, acompanhado de uma performance corporal de quem professa as palavras (caminhando em círculo e gesticulando). Existe todo um ritual de início meio e fim dessas cerimônias. Essas performances são acompanhadas também pelo uso da fumaça do petygua, pelo rodar do ca’ay (chimarrão) e pela presença do tatá (fogo). Ayvu é uma das qualidades mais valorizadas no prestígio de cada Mbyá, pois é entendida como “manifestação humana das forças e das vontades dos deuses, expressa enquanto nhe’e porá (belas palavras ou palavras espiritualizadas), um dos sustentáculos da existência Mbyá. A ayvú, como as nhe’e, possui centralidade na cosmologia Mbyá, “porque ela remete à noção de alma-palavra, uma das duas dimensões mais importantes da pessoa Mbyá-Guarani” (Souza et all, 2009, p. 37). O estudo é qualitativo, etnográfico, sendo utilizados, sem prejuízo de outros mecanismos de buscas: Diário de campo - anotações das visitas às Aldeias e conversas com mulheres Xamã; uso do cachimbo; leitura de livros e pesquisas que tratem sobre Rituais Xamânicos, participação das mulheres nos diversos espaços de Cura. O trabalho de campo é fundamental nesta forma de abordagem da pesquisa. Quando estudamos as pessoas, lidamos com emoções, tanto nossas quanto das pesquisadas. Morin (1997, p. 30) em seu livro Meus Demônios, aborda a necessidade dos historiadores serem historicizados. Ele afirma que toda a história do passado sofre a retroação das experiências do presente, que lhe dão uma iluminação ou um obscurecimento particular. Isto o levou a pensar que não existe “observador puro, daí o observador/conceituador deve se observar e se conceber em sua própria observação”. Como eu uso o cachimbo para “rezar” nas pessoas, fui buscar nas mulheres Guarani este conhecimento: como aprendem, como ensinam e como rezam com o cachimbo. A partir da idéia de estudar mulheres Xamã, busquei identificá-las a partir do meu trabalho de campo e relações. Geralmente, nas aldeias, os interlocutores são os homens, os caciques. As mulheres (principalmente as Guarani) muitas vezes não falam o português, nem mantém muitas relações com os não índios. Existem poucos trabalhos estudando o Xamanismo na visão das mulheres, e menos ainda relacionado ao cachimbo. Pensando em saúde indígena, o modo de “fazer”, o modo de “construir”, somente alcançarão sentido, se for construído “com” os indígenas, conhecendo, aprendendo, e, principalmente, respeitando seus conhecimentos tradicionais. BAPTISTA DA SILVA, Sergio. « Contato interétnico e dinâmica sociocultural: os casos guarani e kaingang no Rio Grande do Sul ». In: BERGAMASCHI, Maria Aparecida (Org.). Povos Indígenas & Educação. 1 ed. Porto Alegre, RS: Mediação, 2009, p. 29-43.MORIN, Edgar. Meus Demônios. Rio de Janeiro, RJ: Bertrand Brasil, 1997.