Rede Unida, 10º Congresso Internacional da Rede Unida


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O Espaço de Convivência no CAPS Clarice Lispector
Heloisa Leão dos Santos

Resumo


O presente trabalho fundamenta-se nos princípios da Reforma Psiquiátrica e Política Pública brasileira de assistência à Saúde Mental, assim como da teoria psicanalítica, com o objetivo de analisar em que aspectos o espaço de convivência se inclui no serviço de tratamento do CAPS Clarice Lispector. O CAPS Clarice Lispector localiza-se no bairro do Encantado no Rio de Janeiro e possui esse nome em homenagem à autora que tanto refletiu sobre as condições da existência humana. A convivência nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) é considerada por manuais e livros que dissertam sobre o serviço como pertencente ao seu aspecto terapêutico. Apesar do reconhecimento desse espaço como importante no funcionamento do CAPS, a quantidade de referencias que tratem especificamente sobre o assunto é pequena. Em definição no dicionário, encontramos convivência como relação, associação, trato diário, familiaridade, ou ainda, mostra de que há vida. Assim, nesse trabalho, entendemos o espaço de convivência não como o espaço físico, mas como os espaços de relação entre técnicos e usuários, e usuários entre si, que não aqueles já demarcados previamente como atividades do serviço. O espaço de convivência discutido nesse trabalho refere-se, portanto como todos os lugares em que os usuários podem constituir laços, trocas, para além das atividades estabelecidas previamente como as oficinas e os grupos terapêuticos. O CAPS tem como objetivo a prestação de atendimento clínico em regime de atenção diária, tentando minimizar assim as internações psiquiátricas, promovendo a inserção social de seus usuários através de agenciamentos com sua rede territorial, sendo assim a base do modelo substitutivo hospitalar de acordo com as diretrizes públicas pós-reforma Psiquiátrica. Insere-se num campo teórico/prático que tem como pilares a desinstitucionalização, a clínica institucional e a reabilitação social. O CAPS como instituição de tratamento, e principalmente para alguns usuários com maior dificuldade de inserção no social, se configura como o lugar primeiro de possibilidade de formação de laços. Entendendo que a psicose é marcada justamente pela ruptura dos laços sociais, tem-se nesse espaço de convivência a possibilidade de estabelecer vínculos afetivos e sociais, através do cotidiano e dos acontecimentos. Nesse contexto a instituição passa a ser a referência do cotidiano para esses usuários que no momento de crise perderam sua relação com o mundo, se constituindo numa certa regularidade de movimentos. A tentativa de reconstrução desse psíquico dilacerado passa para alguns pela necessidade desse cotidiano institucional, dado no espaço de convivência do CAPS. No Clarice, durante o período de estágio e elaboração desse trabalho, foi possível estar próximo de alguns usuários que tem essa referência no CAPS e frequentam o serviço diariamente. Alguns têm a rotina de chegar logo pela manhã, antes mesmo dos portões se abrirem, e irem embora depois do almoço, ficando durante esse período na área comum. Outros ainda permanecem durante todo o expediente do CAPS, mesmo sem atividade programada para aquele dia. O conceito de rotina nesse trabalho também é importante porque é possível ver que são nos momentos do cotidiano como tomar o remédio, refeições, situações relacionadas à higiene, é que as relações entre os próprios usuários são mais facilmente estabelecidas. Se por muitas vezes o silêncio é o que se estabelece entre eles, falas do tipo “você já almoçou?”, “a farmácia já está aberta?”,“sobrou pão?” são comuns, e apostamos nisso, elo comum entre eles, para uma abertura de um vinculo mais consistente. É através dessa construção de pequenos hábitos do cotidiano, como por exemplo, o ato de tomar banho, que a relação de um dos usuários de difícil laço social se dá com outro que todo dia o convoca sobre a importância desse cuidado pessoal, dando lhe um sabonete e toalha e lhe mandando tomar banho. O espaço de convivência possui assim um lugar privilegiado no tipo de intervenção que tem como objetivo o aumento da “contratualidade social”, estando o terapêutico na inserção de possibilidades de maior vínculo, permitindo maior comunicação, criação e vivencia de relações interpessoais. Embora entendamos que seja necessária uma direção política de trabalho, nesse caso sob o nome de reabilitação social, a clínica que visa subjetividades compreende que as possibilidades de estar no mundo são singulares para cada sujeito, e por tanto, que alguns não conseguem chegar muito longe. Tendo como orientação esse aspecto singular do sujeito, e a dificuldade na psicose da inserção social é possível participar do convívio, tentando facilitar os laços, mas sem a angústia de que às vezes parece nada acontecer por ali. A aposta é de um tratamento que consiste, “simplesmente”, em acompanhar o sujeito. Sobre esse acompanhar o sujeito, a experiência do estágio possibilitou verificar como o espaço de convivência possibilita esse acompanhamento e sua riqueza para minha formação profissional. Ao estar naquele espaço, principalmente no período inicial do estágio em que chegava cedo e ficava com os usuários antes das atividades começarem, pude através de conversas com alguns usuários estabelecer certo laço e assim compreender um pouco mais das questões da psicose. Alguns com o tempo me procuravam no espaço de convivência mesmo, onde conversávamos nos bancos dos corredores ou pátio sobre dificuldades com a “doença” ou com a própria vida. Não raramente algum outro usuário ao ouvir a conversa dava sua opinião e emitia alguma ajuda, seja através de palavras ou abraços. Partindo da visão de que a psicose é um modo de existência, que muitas vezes implica em dificuldades de viver e em estar no mundo de modo geral, é preciso que seu tratamento aborde integralmente a questão da vida. Ao deixar de lado a questão da cura tem-se como objetivo a ajuda para o paciente viver, estar no mundo. Nesse objetivo, é importante que o usuário se sinta pertencente a algo, sendo esse algo muitas vezes o próprio tratamento como lugar onde ele possa se inserir e permanecer. Compreendemos que apesar de para alguns usuários o espaço de convivência acabar se constituindo em uma certa perda devido a possuírem já recursos para estar na cidade, o espaço de convivência para outros se faz base para a reabilitação psicossocial. Nesse espaço, que os usuários conversam informalmente sobre suas vidas, preocupações, sofrimentos, noticias do jornal, jogo de futebol, a festa da família, surgem oportunidades de outros programas sociais, como um grupo de usuários que combinavam de irem juntos ao cinema, ou outros que combinam de assistir jogos de futebol no estádio Engenhão, localizado próximo do CAPS referido e, portanto de suas residências. O que ocorre nesse espaço também é útil por fazer com que ao contar suas histórias, o usuário possa se apropriar delas ajudando nessa reconstrução de mundo. Se por um lado, a partir do que abordamos nesse trabalho, a constituição de um espaço onde haja um acolhimento, um contorno, um dentro que ajude na construção de um lugar para o psicótico se faz importante, por outro devemos a todo instante cuidar contra a possibilidade desse espaço se fechar, funcionando como réplica do modelo manicomial. É portanto nesse entre- o fora e o dentro - que o trabalho do CAPS deve ser realizado, e na mesma direção o espaço de convivência deve ser tanto uma referência para a constituição de um lugar, como um facilitador de abertura para a cidade. O espaço de convivência entendido como possibilidade dessa relação e troca entre os usuários e técnicos não é um espaço pronto, mas que precisa ser continuamente construído.