Rede Unida, 10º Congresso Internacional da Rede Unida


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O poder psiquiátrico: da produção de doenças nos hospitais à invenção das clínicas do trabalho
Eric Campos Alvarenga, Paulo de Tarso Ribeiro de Oliveira

Resumo


Clínicas do trabalho, termo usado para nomear um conjunto de teorias que têm como foco de estudo a relação entre trabalho e subjetividade. Alguns registros datam seu surgimento por voltar da segunda metade do século XX, dentro do âmbito dos estudos sobre saúde metal. Mais especificamente, uma de suas principais teorias é a Psicodinâmica do Trabalho, desenvolvida pelo psiquiatra francês Dejours a partir da década de 80. Os principais pilares epistemológicos desta são a psicanálise, além também da ergonomia e sociologia do trabalho. Foi um campo originalmente vinculado à psiquiatria. Algumas construções de Michel Foucault, principalmente na obra “O Poder Psiquiátrico”, remontam que o saber psiquiátrico possui uma história peculiar no modo como vem lidando com as “doenças” e os “doentes” desde o século XVIII. E este manejo parece atravessar a fundação das clínicas do trabalho. Sendo assim, o objetivo desta comunicação é construir uma análise crítica do nascimento destas clínicas por meio de recortes históricos, partindo da emergência da produção de doenças no século XVIII e XIX. Veremos que hospital e o asilo do século XVIII funcionavam como um local de constatação para uma verdade escondida e de prova para uma verdade a ser produzida. Por intermédio de uma ação direcionada à doença, seria possível não somente revelar a verdade desta aos olhos dos médicos, mas também produzi-la. Estes espaços mostram-se como lugar de eclosão da “verdadeira doença”, seja física ou mental. O médico, nesta estrutura, é o detentor da verdade da doença. Ele pode produzi-la em sua natureza e submetê-la por intermédio do poder que sua vontade exerce sobre o doente. Mas este poder todo não foi exercido sem questionamento. Aparece então a Psicanálise pregando que a condição para a manutenção do poder médico “despsiquiatrizado” é o afastamento de todos os efeitos característicos do espaço asilar. Há uma saída deste espaço para dar sumiço aos efeitos paradoxais do sobre-poder psiquiátrico. Mas também este poder se reconstitui como produtor de verdade, agora, num espaço preparado para que esta produção permaneça sempre congruente ao poder. A noção de transferência como um processo vital para à cura, segundo o autor, é uma das formas de se ver conceitualmente esta adequação na forma do conhecimento. Enquanto que o pagamento, maneira com a qual há um retorno monetário da transferência, é uma forma de se observar a adequação na realidade, uma forma de prevenir que a produção da verdade não se torne um contra-poder que dificulte, anule e revire o poder do médico. Há uma saída do espaço asilar, que ganha nova morada não só nos consultórios dos psicanalistas, mas também em qualquer espaço onde haja a possibilidade de se produzir um doente. Há a criação do que Foucault chama de uma “grande família indefinida e confusa”, os anormais, parece ter contribuído para isto. Esta ampla categoria abre uma vasta possibilidade de produção de enfermidades diante dos olhos do saber psiquiátrico. Sua formação se dá em correlação com um conjunto de instituições de controle e séries de mecanismos de vigilância e de distribuição. Três figuras formaram este grupo: o monstro, o incorrigível e o onanista. Cada uma delas será colocada em sistemas autônomos de referência científica. Uma teoria em especial, inventada a partir da obra de Morel, recobrirá os anormais e servirá, durante mais de meio século, como um cabedal teórico a ser usado para justificação social e moral a todas as técnicas de localização, de classificação e de intervenção sobre estes. É a teoria geral da “degenerescência”. Toda uma organização institucional complexa será construída para, na medicina e na justiça, servir ao mesmo tempo de estrutura de “acolhimento” para os anormais e de instrumento de “defesa” da sociedade. Há também um movimento através do qual o problema da sexualidade infantil se tornará o princípio de explicação mais fértil de todas as anomalias. Ela, a sexualidade da criança, recobrirá tanto a teoria geral da degenerescência quanto a organização desta rede institucional citada acima. Agora, as doenças surgiram em qualquer lugar onde possa ser encontrado um anormal. Um deles é nos locais de trabalho. Na segunda metade do século XX acontece a criação da clínica voltada às questões do trabalho. Esta teve seu marco inicial no âmbito dos estudos sobre saúde mental, especialmente em duas grandes abordagens atreladas à psicopatologia do trabalho, campo originalmente vinculado à psiquiatria. No contexto francês, por exemplo, Sivadon, Veil e Le Guillant são os principais precursores. Sivadon preocupou-se com os problemas de adaptação individual no trabalho, direcionando sua análise às fragilidades do trabalhador nas mais variadas situações laborais. Situações de insegurança e de conflitos poderiam desencadear desequilíbrios no processo adaptativo dos trabalhadores, configurando assim uma “Neurose do trabalho’’. Já Veil amplia esta perspectiva de Sivadon e começa a analisar não somente as singularidades psicológicas do sujeito. Ele expande o foco de análise para a organização do trabalho. Formam-se então duas polaridades no trabalho. De um lado, ele é fonte de desgaste e sofrimento, de outro, é também atividade criativa e meio de sublimação. A clínica do trabalho agora ocupa-se da análise situacional das experiências do sujeito em seu labor e das diversas formas de desadaptação provocadas pela saturação dos mecanismos de defesa. Mas é Le Guillant quem mais parece ter contribuído para a fundação de uma abordagem especificamente clínica do trabalho, insistindo na indivisível união entre o indivíduo e seu meio. O autor aponta que o clínico do trabalho tenha como norte as situações concretas vivenciadas pelo trabalhador, pois visualizará nestas as diversas manifestações patológicas. Le Guillant demonstra visível inspiração do materialismo histórico-dialético. Assim como Sivadon, também procurou por neuroses no trabalho, ficando conhecido por sua hipótese da “neurose das telefonistas”. Propõe três novos planos de análise: biofisiológico, psicoafetivo e psicossocial. Usa-os tendo como fundo o próprio trabalho e as relações objetivas construídas entre trabalhador e sua atividade. O que se percebe diante do que foi levantado é que a expansão dos domínios da psiquiatria, com a noção de anormalidade, pode ter sido o chão para a criação das clínicas do trabalho. A psiquiatria que se inscreve no interior da prática e do saber médico no período de 1800-1830, ainda hoje parece ecoar na criação de vários outros saberes. Do médico ao psiquiatra, deste para psicólogos e depois clínicos do trabalho – surgem os mais variados tipos de profissionais da saúde. Do hospital para os laboratórios, clínicas, espaços de trabalho, entre outros – qualquer lugar agora parece servir para a produção de enfermidades.