Rede Unida, 10º Congresso Internacional da Rede Unida


Tamanho da fonte: 
O trabalho docente na formação em comum para a saúde
Sidnei José Casetto, Fernando Sfair Kinker, Angela Aparecida Capozzolo

Resumo


O plano da formação e sua pesquisa No campus Baixada Santista da UNIFESP teve início, em 2006, a graduação de cinco profissões de saúde (educação física, fisioterapia, nutrição, psicologia e terapia ocupacional), com um projeto político-pedagógico que previa a existência de eixos comuns, além de um específico a cada área, em que os alunos dos cinco cursos se mesclassem e aprendessem juntos, favorecendo o posterior trabalho em equipe. Dos três eixos comuns, um era voltado para as ciências biológicas, outro às ciências sociais e um terceiro destinava-se à preparação para o “trabalho em saúde”, tendo recebido este nome. Para o planejamento deste Eixo foram contratados inicialmente dois docentes da área de saúde coletiva que, junto com colegas das demais áreas, foram organizando uma proposta de formação destinada à preparação para a atenção integral em saúde, considerando a rede e o sistema de saúde, e para o trabalho em equipe interdisciplinar. Esta proposta desenhou-se por meio de escolhas políticas importantes. Ao invés de configurar um eixo de saúde coletiva separado do efetivo cuidado profissional em saúde, articulou-se com os cursos (eixos específicos) e seus docentes, que passaram a ser docentes do Eixo; atualmente em número aproximado de 40. Privilegiou o aprendizado na experiência, adotando práticas de conhecimento de território (primeiro ano), de produção de narrativas de história de vida, e ações de promoção de saúde com grupos populacionais (segundo ano) e a realização de projetos terapêuticos singulares (terceiro ano). E finalmente, escolheu centrar sua atuação em áreas urbanas de maior vulnerabilidade, como as palafitas da Zona Noroeste, os morros e os cortiços do centro de Santos. Tais escolhas produziram tensionamentos de diversas naturezas, na medida em que demandam trabalho docente em quantidade e qualidade, logística de transporte, presença em regiões periféricas da cidade e os medos daí resultantes. A cada ano de sua implantação uma situação de crise emergia, ameaçando a continuidade da proposta, até que a primeira turma chegou aos estágios e, em seguida, ao início da vida profissional, e passou a avaliar positivamente a trajetória percorrida. Entrementes, projetou-se uma pesquisa de avaliação deste processo, (Capozzollo, 2011) que, entre 2009 e 2011, produziu dados por meio de documentos do período, resgate da memória de participantes, entrevistas e grupos focais. O trabalho destes dados, feita por um coletivo de 15 pesquisadores e estudantes, resultou na organização de grandes categorias de análise, relativas ao aprendizado na experiência, à formação em comum das áreas profissionais, à relação da universidade com os serviços, e ao trabalho docente neste processo. Este trabalho sintetiza os resultados correspondentes a este último item. O trabalho docente e sua função neste plano pedagógico Pelo modo como o Eixo Trabalho em Saúde (TS) se constituiu, com docentes de todas as áreas profissionais em formação no campus, o trabalho docente tornou-se um de seus aspectos mais expressivos das dificuldades, complexidade e contradições institucionais envolvidas na formação interprofissional para o trabalho em saúde. O convívio com outros profissionais, em um campo de práticas fora do campus universitário e aberto aos imprevistos da vida cotidiana (acentuados pela baixa renda dos usuários dos serviços de saúde), com estudantes de áreas diversas e a exposição a situações para as quais não se está inicialmente preparado, tende a produzir sensações iniciais de desconforto e impotência. O principal das tensões produzidas, porém, parece não ocorrer no âmbito de suas instâncias formais da universidade (departamentos, cursos, comissões, Eixos), e sim no âmbito do docente e seu cotidiano acadêmico: as demandas com as quais tem que lidar, os conflitos com que tem que se haver, as pressões que tem que suportar. É ele que tem que distribuir seu tempo, fazer escolhas, e arcar com as conseqüências dela. O estudante também vive tensões semelhantes, mas em escala menor. Com isso, o custo do modelo parece recair expressivamente sobre o grupo que o sustenta, do que resulta uma adesão instável dos docentes ao Eixo (vários entram e saem). Mas a adesão de muitos acontece, donde a pergunta sobre as suas razões: o que pode atrair e manter docentes numa proposta como esta? E ainda: como compreender a existência de um projeto pedagógico como este no contexto em que está estruturada a universidade brasileira da atualidade? A assimilação institucional de modelos contra-hegemônicos Tomemos a assertiva de que o Eixo TS acontece no contexto de uma instituição que opera com uma lógica na qual o maior valor está na produção de pesquisas, produção de conhecimento científico e publicação, as carreiras individuais são as que importam, e o poder se organiza de modo verticalizado. Nesse caso, teríamos que considerar a inevitabilidade de resistências a uma proposta que enfatiza o ensino de graduação, apostando no preparo apurado do profissional de saúde; que subordina as evidências do conhecimento científico à arte da clínica que não pertence a ninguém e é da ordem de todos; que opera de modo a estimular trabalhos de equipe e ações grupais; e finalmente, que defende um exercício mais horizontal do poder. Cabe, no entanto, localizar bem as tensões geradas pelo Eixo TS. Malgrado as diferenças apontadas entre o projeto do Eixo e o modelo universitário vigente, com as contradições decorrentes, seria apressado supor que a instituição é ameaçada pela proposta de TS. Talvez fosse mais certo considerar o contrário: que o Eixo TS não cria problemas para a lógica universitária, que mesmo pode convir-lhe. Um primeiro ponto a considerar diz respeito ao fato de que TS dirige o principal de sua ação para a cidade, produzindo ações extensionistas como forma de aprendizado; sua força seria, assim, mais centrífuga que centrípeta. Segundo ponto: que um grupo se ocupe de ensinar clínica de forma artesanal, amortizando a corrida pelo currículo Lattes, não ameaça a instituição; antes a reforça, ao mostrar que é também capaz desse tipo de produção. Neste sentido, TS poderia até ter a hegemonia da proposta de formação, sem que nada se alterasse no modelo universitário vigente. Em contrapartida, o ponto de cruzamento dessas diferentes lógicas e consequente tensionamento tende a ser o docente. É nele, bem mais do que nos estudantes, que a diversidade das cobranças, os conflitos relativos a quais demandas priorizar, o impacto do não reconhecimento acadêmico, parecem encarnar-se. Produzir-se-ia, então, uma experiência individual de insuficiência e seu inevitável sofrimento, ao lado da gratificação resultante da riqueza das atividades de campo e do seu impacto nos pacientes, alunos e em si mesmo. Esta riqueza, relativa ao ensino da prática clínica, poderia ajudar a entender a adesão de docentes ao Eixo. Nem todos os docentes têm formação ou envolvimento com a área clínica; alguns são mais propriamente pesquisadores, ou profissionais com formação direcionada para algum aspecto específico da área; mas aqueles que são capturados pelo interesse em intervir em situações de vida e de saúde de sujeitos concretos, parecem sustentar-se no Eixo. Talvez não seja o interesse por qualquer modelo de clínica, mas daquele extensivo aos equipamentos públicos de saúde, além da adoção de determinados valores, como os da equidade, universalidade de acesso aos serviços, igualdade de direitos. Locus das contradições numa proposta com esta, o docente pode lidar de diversas formas com elas, inclusive afastando-se da tarefa ou, em sentido oposto, rejeitando as demais exigências acadêmicas, mas é ele que está colocado na posição de quem deverá arcar com seus custos e usufruir de seus benefícios. Referência bibliográfica CAPOZZOLO, A.A. et al. Formação para o trabalho em saúde: a experiência em implantação nos cursos de graduação - educação física, nutrição, fisioterapia, psicologia, e terapia ocupacional - da Universidade Federal de São Paulo, campus Baixada Santista. 2011. Projeto financiado pelo CNPq, processo: 479031/2008-8.