Rede Unida, 10º Congresso Internacional da Rede Unida


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Reforma Curricular: desafios, enfrentamentos e cartografias
Monica Moreira Rocha

Resumo


Reforma curricular: desafios, enfrentamentos e cartografias. Autor- Mônica Rocha O objetivo desse relato é colocar em discussão as diferenças e efeitos de dois processos de reformas curriculares implementadas no Curso de Fonoaudiologia da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro. É oportuno um breve relato da constituição do Curso, pois ele retrata diversos contextos, desde o pedagógico para a formação do fonoaudiólogo, bem como o contexto político e organizacional da sua inserção institucional na Faculdade de Medicina. Assim desde 1994, ano de fundação dos cursos de Graduação em Fonoaudiologia e Fisioterapia, a Faculdade de Medicina passa a ser composta por três cursos. Esse contexto é bastante relevante, sobretudo se considerarmos a graduação de medicina da UFRJ,com sua matriz de formação marcada por uma forte tradição no ensino médico arraigado ao modelo hegemônico médico-centrado. Não menos relevante, foi sua tímida presença, até então, nos diversos movimentos e cenários nacionais de discussão sobre as demandas de mudanças na formação dos profissionais de saúde para o SUS. Desta forma, o curso de Fonoaudiologia, na sua origem, esteve marcado por toda essa lógica de formação. O currículo tinha a seguinte configuração: extensa carga horária em diversas disciplinas do ciclo básico, concomitantemente com as disciplinas das ciências humanas – Faculdade de Letras, as quais ocupavam os dois primeiros anos de formação. As disciplinas do ciclo profissionalizante só começavam no quarto período do curso, sendo que os dois últimos períodos do curso eram reservados para o estágio profissional nos Ambulatórios de especialidades das quatro grandes áreas de formação do campo fonoaudiológico, a saber: audiologia, linguagem, voz e motricidade oral. Sem sombra de dúvida nosso curso formava profissionais diferenciados com forte formação “científica” e forte caráter de “especialização”. Isso imediatamente teve um impacto no mercado de trabalho, uma vez que todos os concursos públicos de diversas secretarias Municipais de Saúde do Estado do Rio de Janeiro tinham aprovação maciça dos alunos egressos de nosso Curso. Nossa primeira percepção foi a de que formávamos profissionais que eram imediatamente absorvidos para um mercado de trabalho, porém estes não estavam “preparados” para enfrentar os desafios ali colocados, dito de outro jeito: não formávamos profissionais para o SUS, toda a lógica da formação estava na contra-mão das demandas e desafios daquele contexto de saúde pública. A percepção de que a direção da nossa formação, na sua proposta inicial, não respondia a demanda do mundo do trabalho e, considerando as Diretrizes Curriculares e o processo de avaliação do MEC, em 1999 iniciamos nossa primeira reforma curricular. Começamos esse processo com um Fórum“ sobre os “Novos Parâmetros Curriculares para a Fonoaudiologia”. Nele criamos uma agenda de trabalho pautada nas necessidades apontadas por aquelas diretrizes . Discutimos os ementários das disciplinas com cada um dos professores que ministravam as aulas. Foi de fato, um trabalho minucioso e longo. Além disso, ouvimos os alunos em suas demandas e na avaliação sobre o que desejavam na sua formação. Nesse processo tivemos o máximo de empenho, foi um movimento que contou com todos os professores do ciclo profissionalizante. A responsabilidade, o desejo e a implicação de todos em razão da avaliação do MEC foi um grande agenciador. Éramos para muitos de nossos pares uma espécie de “filho rejeitado” da Faculdade de Medicina. Sabíamos que um bom desempenho na avaliação garantiria certa legitimidade ao curso e fôlego para enfrentar as disputas políticas institucionais. Foram três as principais mudanças desse processo, a saber: 1) quebra da separabilidade do ciclo das disciplinas básicas com o ciclo das disciplinas profissionalizantes. 2) criação de cinco eixos verticais nas seguintes áreas de competência: eixo das disciplinas práticas, de motricidade oral, de linguagem, de audiologia e de voz. 3)introdução do cenário de uma UBS em uma das disciplinas práticas. Contudo, apesar de todos os esforços, nossa formação ainda padecia de uma visão bastante míope do mundo do trabalho. Éramos um grupo jovem e bem pequeno de professores, todos nós no início de suas carreiras acadêmicas, nossa realidade comportava duas condições concomitantes, a de formadores, mas também a de formandos. Não sabíamos disso. Isso significava termos sido formuladores de mudanças na formação com pouco acúmulo de experiência na vida acadêmica, ou seja, tínhamos o desafio de formular mudanças em nós mesmos. Tão pouco esse processo de reformar curricular, tal como foi desenvolvido, foi capaz de dar visibilidade a isso. Sua lógica operava numa certa concepção de tomar o currículo como objeto sem que necessariamente fosse colocado na cena da sua construção os processos subjetivos daqueles que os pensavam e formulavam. Esse é um ponto nodal para a proposição desse relato, volto a isso mais a diante. Porém espíritos inquietos de alguns professores, não convencidos da eficácia dessa lógica de formação, procuraram algumas estratégias no emprego de metodologias ativas de aprendizagem baseada em problema. Essa iniciativa não foi suficiente para uma suposta aproximação do mundo do trabalho, e nem foi capaz de minimizar, ainda que se estivesse construído o eixo das disciplinas práticas, a dicotomia entre teoria e prática. Tão pouco esse movimento de alguns professores proliferou a ponto de engendra uma proposta coletiva de reforma curricular. Foi uma resistência a não acomodação. Desta forma, sustentada “ na reforma oficial” o curso de fonoaudiologia, no site da Faculdade de medicina, apresenta o resultado daquele trabalho assim: “A estrutura curricular do Curso de Fonoaudiologia é fruto de um intenso trabalho de discussão,(...), com a realização do Fórum sobre "Novos Parâmetros Curriculares para a Fonoaudiologia" (...)O resultado deste trabalho é um currículo que visa articular as ciências médicas e humanas às quais se vincula a Fonoaudiologia, com um projeto pedagógico que assume um caráter de formação humanista e generalista, objetivando preparar o aluno para o exercício ético e social da profissão de fonoaudiólogo.Vale ressaltar, que mesmo depois de todo aquele esforço, o SUS continuava não pautando qualquer direção da formação proposta. A segunda reforma curricular, ainda em curso, teve início em meados de 2010, como parte integrante da proposta do Programa de Pró- Saúde. Esta utilizou como dispositivo das mudanças não a grade curricular, as disciplinas, mas o tema do cuidado em saúde e os processos de trabalho. Foram realizadas, até o momento, cerca de dezoito oficinas com os docentes, uma oficina com os alunos dos dois últimos períodos do curso e uma avaliação das disciplinas, realizada junto ao corpo discente, para que fossem analisadas “situações problemas,as quais contemplariam os objetivos das respectivas disciplinas. A incrível constatação foi a de verificar que os programas das disciplinas respondiam aos problemas das situações apresentadas. Esse é um ponte interessante de análise para as proposições das reformas curriculares, as disciplinas não constituem um único vetor de direção para a formação. Ensinar determinados conteúdos não garante a direção que se deseja, para a Formação de um profissional comprometido com o SUS e o cuidado. Como docente, realizei um diário de campo durante todo o processo. Neste estão registradas as dinâmicas das oficinas, o programa para a realização de cada uma delas, as discussões e debates, seus encaminhamentos e, sobretudo as mudanças, as quais foram operando, em cada um dos professores, com repercussões, em ato, nos programas de suas respectivas disciplinas. Disso já podemos extrair uma conseqüência, e uma tensão, qual seja: trata-se de um processo em acontecimentos e agenciamentos. Dito de outro modo, uma reforma curricular não é algo que se opera em uma lógica linear, cujos efeitos imediatos possam ser suspensos, afim de que se cumpra, passo a passo, uma metodologia de identificação do problema, metodologias de aprendizagem, planejamento da grade curricular e execução. Ao contrário, nossa experiência tem nos mostrado que implementar uma reforma curricular significa realizar um processo de trabalho vivo em ato,cujas tensões, implicações, afecções, desejos, a noção de cuidado são os elementos que mais potencialmente operam e são intercessores de mudanças. As cartografias compostas pelas linhas de afetos e desejos dos múltiplos atores em cena, instituindo um coletivo desejante, na discussão a respeito de qual profissional desejamos formar trouxe para o centro das discussões o cuidado. Todo o trabalho teve com intercessor a seguinte proposição: como é possível ensinar a cuidar? O objetivo desse relato é sistematizar e compartilhar essa experiência extraindo dela novos mapas e cartografias para uma formação profissional que almeje colocar no centro de sua proposta o compromisso com a vida do outro e a responsabilidade de todo profissional de saúde como ator do SUS.