Rede Unida, 10º Congresso Internacional da Rede Unida


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SINGULARIDADE, AÇÃO E RENOVAÇÃO DE MUNDO: a amizade na escola e suas potencialidades
Grasiele Nespoli, Anna Luiza Barbosa Martins

Resumo


Este trabalho consiste numa investigação das implicações e da importância da amizade desenvolvida no espaço escolar para a formação humana. Trata da amizade sob uma perspectiva menos voltada para o âmbito particular, íntimo, que para o âmbito coletivo, enxergando este tipo de relacionamento como um instrumento de ruptura com os limites impostos pela sociedade capitalista, que têm o intuito de difundir relações que reafirmem práticas de exclusão, de separação, de preconceitos, de intolerância. Neste sentido, defende a dimensão política que existe neste relacionamento como dispositivo gerador de mudança, de mobilização, de valorização e respeito das diferenças, além de crescimento pessoal dos sujeitos-amigos. O objetivo geral da pesquisa realizada foi analisar a potencialidade política que este tipo de relacionamento pode apresentar, considerando fatores próprios do convívio proporcionado pelo espaço escolar, como a heterogeneidade e a necessidade de cooperação. Esses fatores possibilitam o rompimento de pensamentos previamente moldados pela sociedade capitalista e a criação de projetos solidários e inovadores, comprometidos com a renovação de um mundo plural, que está fora dos eixos, mas que pode e deve ser transformado por cada geração que o habita. Além disso, a pesquisa objetivou avaliar a importância que a amizade na escola pode apresentar para a formação pessoal dos sujeitos, levando em conta os valores que permeiam esses relacionamentos construídos com base na afetação subjetiva que sofrem a partir do encontro e do convívio das diferenças no espaço escolar. Desta forma, o trabalho consiste numa pesquisa qualitativa, visto que trata do universo dos significados, das relações humanas, dos sentimentos e emoções. Caracteriza-se também como uma pesquisa exploratória, no sentido de buscar compreender um tema pouco explorado e de poucas referências na literatura. Para a análise da questão central, os métodos utilizados foram a revisão bibliográfica e, devido à escassez de material produzido sobre o tema, um grupo focal com alunos da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, uma das instituições da Fundação Oswaldo Cruz. Tal espaço foi considerado um local apropriado para a análise pretendida devido ao seu Projeto Político Pedagógico que prevê uma formação integral, ética e política, que envolve a valorização dos sentimentos, da sensibilidade e dos sentidos e entende que os sujeitos se educam e se constroem a partir das relações que travam entre si. Além disso, o âmbito escolar mostrou-se como um recorte apropriado devido ao fato de se tratar de um espaço de formação, seja acadêmica propriamente dita, seja pessoal. Formação esta que abarca a vivência de conflitos, o enfrentamento das diferenças e abarca também uma espécie de ousadia, uma vez que o exercício da alteridade, especialmente num espaço tão heterogêneo como a escola, é desafiador. Essa heterogeneidade se justifica pela própria proposta da escola – sobretudo pública -, que pretende ser um espaço acolhedor, aberto àqueles que vierem, com suas experiências, pensamentos e formações diferenciadas. O papel da instituição escolar é fazer uma interface para os alunos, os sujeitos que ali serão formados. Interface que dará conta de articular dois espaços de naturezas distintas, a saber, a família e o mundo plural que os jovens ainda não conhecem. Sua missão será proteger a singularidade de cada um, no intuito de preservar os diferentes potenciais, ao mesmo tempo em que apresentará um mundo que é palco de muitas barbáries, mas que consiste no espaço que se tem para habitar, para conviver e que, por isso, deve ser amado, cuidado e transformado em prol do coletivo. A pesquisa estruturou-se com base no pensamento da filósofa Hannah Arendt que, apesar de não tratar a fundo a questão da amizade, apresenta uma discussão rica, que possibilita a reflexão sobre o tema. Assim, o trabalho pauta-se, principalmente, nos conceitos arendtianos de singularidade, ação e renovação de mundo. Tais conceitos, extraídos da revisão bibliográfica, nortearam a discussão no grupo focal. A singularidade, para Arendt, é algo próprio do sujeito, que define quem ele é – contrapondo-se ao conceito de status tão presente no ideário contemporâneo, que define o que um sujeito é, com base na esfera social a que pertence - e que se manifesta, antes de tudo, aos outros que estão ao redor, através do discurso e das ações do sujeito. A ação, por sua vez, é a dimensão mais especificamente humana, isto é, diz respeito à convivência entre os seres humanos em geral e ao sentido que esta dá à sua existência. Já a renovação de mundo acontece devido ao nascimento de cada novo ser e à potencialidade de ação livre dos sujeitos singulares de cada geração que adentra o mundo, este espaço comum, rico em tradições e contradições. Para Arendt, o mundo é um lugar que está fora dos eixos – já que o âmbito privado, cada vez mais, invade e se confunde com o público, comprometendo a verdadeira essência da política - e que cabe a cada geração que nasce renová-lo, de modo a consertar e rearrumar este lugar. O produto do grupo focal mostrou que a amizade na escola possui uma grande potencialidade política de mudança social - proporcionada pela riqueza da troca de ideias, valores e pensamentos num contexto desafiador como o espaço escolar - que, em geral, é pouco percebida e, consequentemente, pouco desenvolvida. Ficou claro que a amizade é um relacionamento que tem o poder de mobilizar, de impulsionar a ação, e que, de acordo com a troca intersubjetiva estabelecida, os sujeitos podem direcionar esta ação para o âmbito coletivo, ou manter seus efeitos restritos à esfera íntima. Foi possível perceber, também, que no espaço escolar, as singularidades se esbarram e se afetam de formas diferentes, e que, de acordo com os efeitos dessa afetação, os vínculos serão ou não estabelecidos e voltados ou não para o coletivo. O discurso dos alunos participantes mostrou que existe uma divergência entre eles, no tocante ao fator que impulsiona o início de uma amizade na escola. Alguns afirmaram que essas amizades se constroem a partir da identificação de semelhanças. Outros, pelo contrário, iniciaram suas amizades a partir do estranhamento e até mesmo da antipatia. Estes fatores - semelhança ou estranhamento - constituem os elementos de afetação causada pelo encontro com a singularidade do outro. Além disso, a discussão grupal mostrou que existem inúmeros valores que embasam a relação de amizade e sustentam os afetos, como a confiança, o respeito mútuo, a liberdade, o diálogo e o cuidado com o outro. No discurso dos jovens, a amizade foi classificada como uma relação livre, democrática, onde os amigos podem se expressar sem reservas, com a confiança de serem compreendidos pelo amigo e acolhidos, mesmo apesar das diferenças. Já o cuidado apareceu nas falas dos alunos interligado com os conceitos de “tratar bem” e de respeito, sendo traduzido em atitudes como o carinho demonstrado pelo outro e a preservação do afeto desenvolvido em relação ao amigo mesmo com as mudanças que ele sofre. Neste sentido, a amizade constitui um relacionamento que contribui, de forma especial, para a formação humana dos sujeitos nela envolvidos e que, portanto, torna-se extremamente relevante. Conclui-se, por meio das análises referidas, que a amizade na escola é um relacionamento que apresenta abertura para a experimentação, para a criação de projetos inovadores, pautando-se na democracia, na liberdade e no potencial das diferentes singularidades dos sujeitos-amigos. Percebe-se que a troca intersubjetiva proporcionada por este relacionamento é extremamente rica e colabora diretamente para a formação e constante transformação dos amigos. Além disso, foi possível identificar que o encontro das diferentes subjetividades no espaço escolar tem o poder de gerar ação, que pode estar voltada para uma mudança interior, mas também no coletivo. Neste sentido, este trabalho afirma que a amizade na escola, um relacionamento corriqueiro, mas tão rico, possui potencialidades política e de (re)construção pessoal que se mostram promissoras e, portanto, deve ser cultivada e desenvolvida.