Rede Unida, 10º Congresso Internacional da Rede Unida


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O PRÓ-SAÚDE NO CURSO DE ODONTOLOGIA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ. RELATO DE UMA VIVÊNCIA DE SEIS ANOS.
Otacílio Batista Sousa Nétto, Marcoeli Silva Moura, Marina Deus Moura Lima, Gilberto Pires Lages, Simone Souza Lobão Veras, Josilda Floriano Melo Martins, Wágner Serra Silva Filho, Caroline Deus Tupinambá, Janaína Cordeiro Oliveira Castro, Regina Ferraz Mendes, Raimundo Rosendo Prado Júnior, Rodrigo Richard Silveira

Resumo


CARACTERIZAÇÃO DO PROBLEMA A formação superior em saúde no Brasil foi marcada desde o surgimento dos primeiros cursos no território nacional até a vigência da regulamentação do atual Sistema Único de Saúde (SUS), por um estado de alheiamento e indiferença à organização das políticas públicas de saúde, e ao debate crítico sobre os modelos assistenciais desenvolvidos nos serviços de saúde (fossem eles produtores de procedimentos ou produtores de cuidados em saúde), apresentando pouca ou nenhuma aproximação com a realidade social e epidemiológica do povo brasileiro. Os modelos curriculares foram e permanecem em alguma medida, predominantemente fragmentados, divididos em ciclos distintos e estanques: básico e profissionalizante, com pouca integração entre os mesmos. Há uma sólida hegemonia dos princípios apontados pelo Relatório Flexner: de uma formação com ênfase nas ciências biológicas e clínicas, progressiva acumulação tecnológica com especialização precoce, adoção de práticas cirúrgico-reabilitadoras como modelo preferencial de intervenção sobre indivíduos e doenças, e a eleição do mercado privado como lócus privilegiado da atuação profissional. No campo das metodologias de ensino-aprendizagem, o enfoque pedagógico disseminado nesse modelo formador, é em grande parte limitado às práticas tradicionais, baseadas na transmissão vertical de conhecimentos, que não privilegiam, tampouco valorizam a reflexão crítica do estudante, inserindo-o passiva e alienadamente no mundo do trabalho. Neste cenário complexo, seria não apenas necessário, mas desejável que a formação em saúde contemplasse e acompanhasse a evolução do conhecimento e das evidências científicas, as mudanças em voga nos processos de trabalho em saúde, as transformações nos aspectos demográficos e epidemiológicos brasileiros, tendo em perspectiva a busca de um equilíbrio possível entre a busca pela excelência técnica e a melhora nos indicadores de saúde coletiva. Neste sentido, os cursos de graduação em saúde no Brasil, deveriam ter como imagem-alvo a formação de cidadãos-profissionais críticos e reflexivos, com conhecimentos, habilidades e atitudes que os tornem aptos e responsáveis a atuarem entre outros papéis, como sujeitos partícipes do desenvolvimento de políticas de saúde, voltadas para população brasileira e implementadas através do SUS. Para enfrentar e superar os obstáculos da formação profissional em saúde no Brasil, os atores/ gestores dos Ministérios da Saúde e da Educação e Cultura e as Instituições de Ensino Superior (IES), por ele regulamentadas, empreenderam através da publicação de novas diretrizes curriculares para os cursos de saúde em 2002 (DCNs), e de portarias interministeriais com os programas Pró-Saúde e PET Saúde, um processo indutivo de maior articulação das IES públicas brasileiras com a sociedade na qual estão inseridas, buscando além do tríptico ensino-pesquisa-extensão, as interfaces ensino-gestão-assistência e controle social, como forma de garantir a relevância, a efetividade e o impacto social da ação acadêmica intra e extramuros. Particularmente no âmbito da saúde, premente é a necessidade de estimular uma formação profissional voltada para a diversificação dos cenários do mundo do trabalho, fortalecendo a possibilidade de carreira no SUS, como alternativa profissional importante e viável. SUS entendido numa perspectiva ampliada, nos seus múltiplos espaços de inserção e em particular, na Estratégia Saúde da Família (ESF). Implantada em 1994, e posteriormente em 2000/2001, com a incorporação dos profissionais de nível superior e médio da odontologia à equipe de trabalho multiprofissional, a saúde da família tem sido a aposta do Estado brasileiro, na construção de um modelo de reorientação assistencial das práticas de saúde no SUS. Em 2006, o curso de Odontologia da UFPI foi contemplado com o edital do Pró-Saúde, e fez deste momento, a mola propulsora da implementação da sua nova matriz curricular. Este processo de mudança envolveu toda a comunidade universitária, e teve como maior respaldo, a constatação de que o modelo formador então vigente era dissociado da realidade local, não orientando os graduandos a uma prática profissional efetivamente comprometida com as reais necessidades sanitárias da sociedade, havendo uma acentuada ênfase no aspecto técnico-científico. O currículo anterior era constituído por disciplinas isoladas, originando um profissional elitizado, com tendência à especialização precoce e com visão não integral e fragmentada da saúde bucal. Nos embates para a reformulação curricular em curso, foram considerados o diagnóstico do perfil epidemiológico da população brasileira e local, a produção científica sobre as iniciativas de mudança na formação nas profissões da saúde, e as políticas públicas brasileiras voltadas para a educação e a saúde. As discussões da reformulação curricular foram permeadas pela participação e co-responsabilização da comunidade universitária com o processo, pelas experiências acumuladas pelo corpo docente, pela árdua busca de consensos, e pela compreensão que a mudança na formação deve ser entendida como processo em que se reconhecem os limites humanos e da infra-estrutura existente. A participação do corpo discente da odontologia da UFPI no mundo real do SUS possui um valor imanente no alcance do perfil desejado de um cirurgião-dentista, voltado para além da realidade dos livros texto, dos procedimentos clínicos e dos protocolos terapêuticos, sobretudo para a realidade das necessidades da população brasileira, em toda a sua polissemia de intercorrências, saberes e de vivências complexas de vida. O objetivo deste trabalho foi apresentar a experiência do Pró-Saúde do curso de odontologia da Universidade Federal do Piauí. DESCRIÇÃO DA EXPERIÊNCIA Este relato de experiência inclui descrições da proposta do curso de Odontologia da UFPI em que são narrados os momentos importantes de transformação curricular do curso de odontologia da UFPI, com o advento do Pró-Saúde, relacionados à disciplina de saúde bucal coletiva. Até 2004-1, as atividades extramuros do campo da saúde coletiva no curso de odontologia da UFPI se restringiam às 60 horas de práticas envolvendo escolares matriculados na rede municipal de Teresina (ensino fundamental), com a realização de palestras educativas e aplicações tópicas de flúor. Em 2004-2, com a entrada dos cirurgiões-dentistas de Teresina no Programa Saúde da Família e a partir de um convênio celebrado pela Universidade com a Fundação Municipal de Saúde de Teresina, as 60 horas de atividade extramuro passaram a ser realizadas dentro dos espaços de trabalho das equipes de saúde bucal na ESF, fase anterior a reformulação curricular. Em 2007-1, inspirado nas DCNs para os cursos de odontologia, foi implantado o novo currículo do curso, que trouxe consigo a ampliação das atividades extramurais de integração com os serviços públicos de saúde, com a seguinte distribuição das atividades: 4o período – 30 horas nas equipes de saúde da família, com carga horária de duas horas semanais, acompanhando o cotidiano semanal dos agentes comunitários de saúde (ACS), supervisionados por professores; 6o período – 60 horas destinadas a realização de atividades de educação em saúde e de pesquisas epidemiológicas sobre a saúde bucal de populações institucionalizadas (escolares), em comunidades e outros equipamentos sociais, também acompanhados de professores; 7o período – 60 horas de atividades da equipe de saúde bucal na estratégia saúde da família, acompanhando os cirurgiões-dentistas e sendo supervisionados por professores; 8o período – 60 horas de atividades nas equipes de saúde bucal da família acompanhando as ESF, supervisionados por professores. No 9o Período, diferentemente dos períodos anteriores, os alunos passaram a ter 96 horas (distribuídas de forma intensiva por três semanas integrais (segunda a sexta, manhã e tarde) acompanhando atividades nas ESBs, supervisionados por professores, com o objetivo de vivenciar o funcionamento da rotina diária de duas equipes da estratégia. Além das atividades desenvolvidas junto às equipes de saúde bucal, passou a ser estimulado o desenvolvimento de atividades realizadas conjuntamente com a equipe de saúde. Atividades de pesquisa (iniciação científica e pós-graduação) e extensão acontecem como desdobramentos das mudanças realizadas. EFEITOS ALCANÇADOS O curso de odontologia da UFPI celebrou uma efeméride no ano de 2010: 50 anos de sua fundação, fundação esta anterior à da própria Universidade Federal do Piaui. Não diferente dos outros cursos existentes no país, o curso em questão sempre se caracterizou por oportunizar aos alunos uma sólida formação tecno-científica, e por apenas marginalmente abordar questões caras ao campo da odontologia em saúde coletiva, tida até em um período não muito distante, como sendo uma visão romântica da odontologia, desvinculada do mercado, inviável, pouco científica e portanto, inviável e não passível de interesse acadêmico. Em relação ao SUS, a formação dos recursos humanos brasileiros em saúde é um dos pontos de grande vulnerabilidade, ainda que o texto constitucional federal (artigo 200, inciso III) determine como atribuição deste sistema público de saúde, o ordenamento da formação de recursos humanos setoriais. Constata-se na organização curricular dos cursos de graduação em saúde, uma cultura acadêmica arraigada de pouco prestígio temporal e espacial dedicados ao estudo da saúde (bucal) coletiva e do SUS. Quando existe, o espaço das disciplinas do núcleo/ campo coletivo guarda um viés imagético do trabalho em saúde hegemonicamente clínicocêntrico, profissional-centrado e procedimento-centrado (cirúrgico-restaurador-medicalizador), muito próximo daquela imagem-objetivo clássica da odontologia de mercado (10). Ao se analisar o passado recente do curso de odontologia da UFPI, constata-se que o referido curso se encaixava com exatidão no modelo curricular supracitado, até o advento das recentes mudanças curriculares. Este clássico arranjo teórico-prático nos centros formadores brasileiros produziu ao longo dos 20 anos de implantação do SUS, um crônico despreparo e uma ausência de clareza semântica dos papéis, das competências, das habilidades e das atitudes a serem desempenhados pelos profissionais de saúde e em particular da odontologia, recém-formados ou não. Dificuldades na compreensão da complexidade inerente ao sistema único de saúde, das questões gerenciais, e também de apropriação clara dos modelos assistenciais em saúde (e a aposta estratégica discursiva do Estado brasileiro na relativamente recente priorização da atenção primária em saúde, ainda que as execuções financeiras dos recursos da saúde não demonstrem o mesmo). No cenário sanitário contemporâneo brasileiro, de avanços e desafios do SUS, e com a expansão quantitativa da estratégia saúde da família, via PROESF, Mais Saúde, cada vez mais se consolida o papel dos serviços públicos de saúde, como grande espaço de absorção e assimilação de profissionais de saúde. E neste novo contexto, a realidade demanda e transcende o aspecto apenas quantitativo. Num ambiente de investimentos crescentes, construção, organização e aposta em redes assistenciais integrando atenção em todos os níveis, pautadas pelo acesso, pela qualidade, pela produção de cuidado e pela adequação à realidade brasileira, deseja-se e anseia-se pela formação de um novo profissional de saúde. A abordagem transformadora (ex)implícita nas novas diretrizes curriculares nacionais para os cursos de odontologia (2002) coloca uma nova inflexão para os cursos de graduação em saúde, elencando e configurando os estágios curriculares, como artefatos de real impacto na transformação da formação do profissional, no contexto de uma estrutura curricular abrangente que contemple, tanto a prática clínica de disciplinas específicas, quanto experiências que visem à integração ensino-serviços-comunidade, em que as vivências dos acadêmicos nos serviços públicos são de reconhecida importância. Neste sentido, na odontologia da UFPI, o primeiro contato do discente acontece no quarto período do curso acompanhando o cotidiano do Agente Comunitário de Saúde, que ao percorrer as casas para cadastrar as famílias e identificar os seus problemas de saúde, contribui para que os serviços possam oferecer uma assistência mais voltada às famílias, de acordo com a realidade e com os problemas de cada comunidade, numa lógica de vigilância em saúde. Este contato próximo com o ACS evidenciou a fragilidade da qualidade das informações repassadas sobre saúde bucal ou mesmo sua absoluta ausência. Como tentativa de equacionar este problema, foram pensados momentos educativos ao longo deste período, com este público. Estes momentos foram ora realizados no auditório do curso de Odontologia da UFPI, ora de forma descentralizada, com capacitações periódicas extramuro, em cada unidade de saúde da família com ACS e acadêmicos do 8º período do curso, abordando-se diferentes temas: saúde bucal; câncer bucal; manifestações bucais de doenças sexualmente transmissíveis, dentre outros. Com os acadêmicos do sétimo e oitavo períodos, a inserção nas equipes de saúde da família busca compreender o cotidiano da estratégia, suas características, problemas e possíveis soluções. Umas das grandes dificuldades encontradas têm sido encontrar profissionais disponíveis para acolher os discentes, pelas alegadas alterações na rotina de trabalho e ‘invasão’ do espaço de trabalho da equipe. Os alunos têm convivido com diferentes perfis de profissionais em virtude da peculiar forma de composição das equipes de saúde bucal da família em Teresina: recém-formados aprovados em concurso público e profissionais mais experientes que foram convidados a participar da estratégia pela gestão central, e esta heterogeneidade de profissionais colaboradores, têm sido considerados uma experiência particularmente rica. Uma lacuna premente na política nacional de saúde bucal aplicada à realidade local tem sido a integralidade da atenção odontológica. Os dois únicos Centros de Especialidades Odontológicas instaladas em Teresina não tem conseguido suprir a demanda por serviços especializados na área. Como alternativa de enfrentamento a este problema, foi implantada uma clínica extramuros gerenciada pelo curso de odontologia da UFPI no interior de uma unidade de saúde da família, onde os acadêmicos trabalham em sistema de duplas de plantão. Nesta clínica são realizados atendimentos especializados no que denominamos de Clínica de Atenção Básica Ampliada nas áreas de Cirurgia, Dentística, Odontopediatria, Periodontia e Prótese, sendo os alunos acompanhados por professores do curso de Odontologia. São realizados procedimentos mais complexos que os da atenção básica nas referidas áreas como tentativa de melhorar a resolutividade da atenção. Transpor as intencionalidades presentes nos documentos e projetos vigentes da nova formação superior em saúde, para o mundo real do curso de odontologia da UFPI, permanece sendo o grande desafio. Há resistências explícitas e veladas nos corpos docente e discente, há ruídos na comunicação entre a academia e o serviço, há julgamentos morais culpabilizadores na mediação docente-discente com a comunidade, há uma limitação de braços e pernas na capacidade dos professores do campo da saúde coletiva em serem os ‘únicos’ responsáveis pela atuação extramural do curso, há por fim, a latente hegemonia da odontologia de mercado seduzindo corações e mentes. Para além das dificuldades, permanece a necessidade de sem menosprezar o desenvolvimento de técnicas e destrezas tão imprescindíveis, encantar a formação em odontologia com um olhar mais acolhedor e vinculado ao SUS e à população brasileira, com responsabilidade sanitária, com clínica ampliada, com evidências sólidas e vivências do trabalho humano em saúde produtor, sobretudo de cuidado para populações territorializadas. RECOMENDAÇÕES Temos claro que as mudanças curriculares isoladamente não dão conta da formação de novo profissional. As estruturas institucionais da formação engendram mecanismos que tendem mais a inércia que ao movimento e são muitas e poderosas as forças que desejam a manutenção do estado de coisas da formação em saúde no Brasil. Mas é impossível negar que vivemos um momento histórico interessante. Temos a sincronicidade de iniciativas acontecendo nos múltiplos campos envolvidos no árduo trabalho formador: novas diretrizes curriculares, projetos como o Pró-Saúde, PET-Saúde, UNA-SUS, TELESAÚDE, o papel importante desempenhado já há muito tempo por organismos como a Rede Unida, ABENO, ABRASCO, CEBES, apontando caminhos parcerias e reflexões, dando visibilidade a iniciativas inovadoras, e também o momento pelo menos animador de expansão vivenciado nas universidades públicas brasileiras, com a busca de inclusão de novos perfis discentes, a contratação de novos docentes, a qualificação da infraestrutura, que de algum modo trazem novos ares, novas perspectivas ao fazer acadêmico.