Rede Unida, 10º Congresso Internacional da Rede Unida


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Entre Carreiras e Masculinidades - Modos, Padrões e Estilos de uso de Cocaína
Osvaldo Francisco Ribas Lobos Fernandez

Resumo


No Brasil, a produção do saber sobre droga está quase inteiramente voltada para a pesquisa do “usuário problemático”, contatado em ambulatórios e serviços de saúde. Porém estes estudos são datados do final da década de 70 e tratam da “drogadependência”, sendo que, nos anos 90, aliam-se a outros fenômenos como a epidemia do HIV e Hepatites. A produção das Ciências Sociais relativa a este campo é ainda muito incipiente, embora internacionalmente venham–se desenvolvendo estudos não apenas a respeito do uso como problema, como também de consumidores ocasionais, recreativos, religiosos, e a respeito do “uso controlado”. Nesse panorama, constata-se a importância da pesquisa antropológica sobre usuários de drogas no Brasil que permite que se ouça a voz e o ponto de vista dos “nativos”. Trata-se, então de enfatizar o caráter politicamente relevante desta abordagem antropológica, visto que os chamados “nativos” sofrem uma série de limitações institucionais e legais. Tais limitações impedem e constrangem a manifestação destes sujeitos, assim como cerceiam a liberdade de atuação de pesquisadores deste campo. Em contrapartida, nesta pesquisa, o trabalho de campo sempre se deparou com o risco ou a possibilidade de o etnógrafo ser confundido com um investigador de polícia, suspeita tal que poderia ameaçar a realização da etnografia proposta. Em que consiste a relevância política da abordagem antropológica? No contexto proibitivo e repressor, é comum verificar violações de direitos de usuários e até mesmo muitos casos de assassinatos. Além de se aproximar destes sujeitos, o enfoque antropológico tem como parte constitutiva inerente ao método empregado o reconhecimento dos “nativos” como atores políticos e de seu “saber experimental” sobre as substâncias psicoativas. Neste quadro restritivo, a relevância do conhecimento dos consumidores define-se sobretudo pelo delineamento de uma outra categoria de uso da droga. Lembremos que a produção médica científica brasileira, em sua grande maioria, consiste em apenas pesquisar o “uso problemático”. Muitas vezes, os “comitês de ética” até inviabilizam pesquisas em outra direção. Assim, a importância dada a outros discursos e pontos de vista neste campo de estudos, principalmente os dos consumidores, contribui para revelar outros modos de uso – particularmente o uso moderado - permitindo uma melhor compreensão do fenômeno e o desenvolvimento de políticas públicas (para educação, saúde e segurança) mais democráticas, eficientes e pragmáticas. O saber e o conhecimento de sujeitos que têm uma prática de ingestão de drogas categorizável como “uso não problemático”, isto é, uso controlado e funcional, apontam novas direções para a educação e a prevenção. De acordo com Zinberg (1984), o uso controlado deveria ser entendido como um modo cientificamente prático de prevenção ao abuso de consumo de drogas. Ele afirma, ainda, que as variáveis do “estado psicológico” (set) e do contexto sociocultural (setting) devem ser consideradas de forma combinada. Assim, serão mais úteis à diferenciação entre uso e abuso, do que somente à distinção de variáveis da droga (ZINBERG, 1984, p.81). Por isso, esta observação etnográfica investigou diferentes contextos socioculturais, estilos de vida e tipos de usos de drogas, visando conhecer os fatores que interferem na auto-regulação do consumo, tendo em vista o trabalho de pesquisadores, influenciados pelas perspectivas das Ciências Sociais, que se dedicaram a estudos semelhantes, tais como: Alfred Lindsmith, Howard Becker, Timothy Leary, Norman Zinberg, Edward MacRae, Jean Paul Grund, entre outros. Foi justamente dentro desse escopo da produção científica e do estudo do “uso controlado” que se buscou pesquisar e participar do debate neste campo de estudos. O problema teórico consistiu em compreender como o contexto social do consumo participa de uma série de variáveis sociológicas para a estabilidade e a manutenção de práticas de uso moderado e funcional. Com os dados disponíveis, foi possível refletir acerca do padrão de uso de cocaína inalada e verificar as tendências no histórico do consumo dos casos estudados. Uma das hipóteses que nortearam esta pesquisa foi verificar se o padrão de uso ocasional é uma estratégia de controle para auto-regulação do consumo de cocaína inalada. E uma segunda questão, derivada desta, é se o uso ocasional é um pré-estágio para um uso mais abusivo ou para cessar o consumo. De acordo com as entrevistas efetuadas, constata-se que muitos usuários se esforçam em controlar o uso, através do padrão de uso ocasional, procurando evitar que este se torne regular. Há, porém, consumidores com padrão de uso ocasional que se utilizam também desse expediente, mas acabam usando, depois de semanas em abstinência, a cocaína de forma “abusiva” durante alguns dias seguidos, perdendo momentaneamente o controle do seu uso. Esta dinâmica do consumo é muito comum entre consumidores de cocaína inalada, mas ocorre eventualmente e não de forma regular. Há uma minoria que faz uso ocasional e que perde o autocontrole por alguns dias, “enfia o pé na jaca”, e depois retoma o controle. Estes momentos são descritos pelos entrevistados como de uso mais “intenso”, que podem durar de um a três dias seguidos, geralmente nos finais de semana. Posteriormente, os consumidores retomam o autocontrole. Portanto, pode-se afirmar que o padrão de uso ocasional não é uma regra eficaz de auto-regulação para todos os consumidores,sendo-o apenas para alguns. Procurando responder à segunda questão, através da análise das tendências nas carreiras de usuários de cocaína inalada, verifica-se que o uso ocasional pode ser um pré-estagio, tanto para o aumento do uso quanto para a redução e o abandono desta pratica. A maioria dos casos que faziam uso ocasional de cocaína tendeu a abandonar e/ou reduzir o consumo, mas uns poucos aumentaram. Por isso, não se pode afirmar, com segurança, e nem inferir uma resposta a esta questão da pesquisa. Isto deveria ser mais bem investigado através de outros métodos – quantitativos –, pois os achados são ambivalentes e a metodologia empregada não permite inferir uma única tendência. Enfim, no caso do consumo inalado de tal substância, segundo as trajetórias de vida dos pesquisados, há um predomínio de posturas mais relacionadas a uma redução e abandono do consumo com o envelhecimento. O uso de cocaína situa-se no período da juventude e de adultos jovens, sendo seu uso abandonado por uma série de motivos de vida, os quais foram relatados pelos entrevistados e analisados individualmente. Portanto, a “teoria da escalada” para cocaína por vias de usos mais pesados e danosos não se confirmou. O suposto “itinerário” do usuário de drogas, proposto por Gómez (1984), como um caminho composto por uma série de etapas comuns às trajetórias dos consumidores também não se confirmou, sendo refutada principalmente pelas carreiras dos inaladores de cocaína “não problemáticos” ou “controlados”. A estrutura psicológica e o nível socioeconômico foram, portanto, fundamentais para que o uso de cocaína não se tornasse um atributo de marginalidade, exclusão, autodestruição e de internações psiquiátricas. Por intermédio das observações etnográficas e entrevistas, constatou-se que o uso controlado de cocaína, possível em sua via de administração inalada, é muito pouco conhecido pelos pesquisadores dessa área e pela população em geral. Além disso, a via inalada possui um grande contingente de adeptos, aqui denominado – segundo as categorias nativas – como de “consumidores light”. Observou-se também que estes usuários iniciaram o consumo mais tarde em relação aos usuários hard, e não têm problemas com o suprimento de drogas, pois não encontram dificuldades financeiras. Controlam seu uso principalmente através de regras e rituais que funcionam como controles informais para a ingestão de cocaína, com uma margem de segurança considerável durante décadas de uso. Deste modo, configurou-se um hábito controlado que minimizou os danos à saúde e ocultou a prática, da repressão policial, do ambiente do trabalho e do núcleo familiar. Em síntese, os consumidores light poderiam ser vistos como “desviantes secretos”, pois há transgressão das regras, mas eles não são percebidos como tal e por isso não há reações ou conflitos decorrentes dessa violação das leis (BECKER, 1966, p.20).