Rede Unida, 10º Congresso Internacional da Rede Unida


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Governamento de masculinidades juvenis nas periferias do Brasil e na França
José Geraldo Soares Damico, Bruno de Oliveira e Silva

Resumo


Boa parte dos estudos sobre juventudes e sobre periferias urbanas, mesmo aqueles que assumem posições comprometidas com maior equidade e justiça social, acaba se apoiando num conjunto de pressupostos científica e politicamente legitimados, que definem a juventude como “um problema” a ser enfrentado. De forma intencional ou não, essa “economia de discursos” tem contribuído, dentre outras coisas, para naturalizar a relação entre criminalidade, violência e pobreza nas periferias urbanas e, nesse processo de naturalização, jovens do sexo masculino tem sido, usualmente, representados como perigosos e/ou como vítimas. A força desses discursos age no sentido de nos “fazer ver” tanto as periferias das cidades quanto a juventude que os habita como se fossem homogêneas, com uma visão que oblitera (tanto dentro, quanto entre) suas especificidades constitutivas. Muitos desses discursos sugerem o endurecimento de penas prisionais e a redução da maioridade penal e são tão potentes que é difícil argumentar na contramão da contundência e assertividade com que estatísticas e fatos deles derivados são apresentados. No caso da França, esse debate está muito acirrado, em decorrência dos confrontos entre a polícia e jovens, em novembro de 2005. Entre as respostas do poder público francês a eles destaca-se a do Ministro do Interior na época (o atual presidente Nicolas Sarkozy), para quem esses jovens constituem a “escória” que ele se comprometia a “limpar” (Giblin, 2009: 163). Em 2007, foi criada uma polícia especial para os subúrbios e os Ministérios da Educação e do Interior anunciaram uma nova reforma na lei do código penal de menores. Em 2009, um novo grupo móvel da polícia foi colocado em ação para atuar em escolas qualificadas como problemáticas. A segurança está na ordem do dia em termos de preocupações de qualquer cidade, em qualquer quadrante do mundo ocidental. Em 20 de agosto de 2007, o governo federal brasileiro lançou o Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (Pronasci), pela Medida Provisória 384, comprometendo-se a investir R$ 6,707 bilhões até o fim de 2012, em um conjunto de 94 ações que envolvem 19 ministérios, em intervenções articuladas entre estados e municípios. Assim, muitas das políticas e programas direcionados à juventude, tanto na França quanto no contexto brasileiro, acabam por assumir e reiterar uma equação que relaciona determinados problemas (como violência, infrações diversas, uso abusivo de álcool e substâncias psicoativas, etc.) a uma essência que, de certa forma, “aprisiona” e reduz a composição complexa e multifacetada de identidades juvenis masculinas de periferias urbanas. Ao operar dessa forma funcionam, estrategicamente, como modalidades de governo de determinadas práticas sociais, no sentido que lhes é dado por Foucault, e que envolvem “não apenas as estruturas políticas e a gestão dos Estados, mas a maneira de dirigir a conduta dos indivíduos ou dos grupos” (Foucault, 1999: 244). As análises apresentadas são resultados de um conjunto de elementos, enunciados em reuniões de grupo com os jovens, em formato de “palavras significativas”, que estão implicados com processos de constituição de identidades juvenis nesses contextos. A abordagem teórico-metodológica situa-se na interface dos estudos de gênero, dos estudos culturais e da antropologia política, principalmente as perspectivas que propõem uma aproximação crítica com a teorização foucaultiana; A investigação aconteceu em dois lócus: O primeiro foi o bairro Guajuviras, em Canoas, cidade da região metropolitana de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, Brasil. O bairro recebe ações do Programa Nacional de Segurança Pública e Cidadania (Pronasci), ali implementadas com o nome de Território de Paz. O segundo lócus foi a cidade de Grigny Centre, na região metropolitana de Paris, na França, considerada uma das cidades mais “explosivas” entre as periferias parisienses; analisei um conjunto de ações de prevenção e repressão à criminalidade situadas nas politiques de la ville. Foi possível evidenciar que as políticas de segurança tornaram-se elementos centrais da agenda política dos dois países, com propostas de soluções dirigidas aos jovens homens, principalmente de grupos considerados em situação de risco e vulnerabilidade social. O Território de Paz, no Brasil, se caracteriza como uma tecnologia de governamento. Organiza atividades de modo a (tentar) regular a diversidade da vida juvenil. As ações do Estado francês operam de modo a criminalizar e a culpabilizar a juventude pobre, árabe e negra por situações consideradas anteriormente como simples incivilidades. Com relação às elaborações dos/das jovens e de suas formações identitárias, fortemente atravessadas por marcadores de classe raça e gênero no Brasil, e de gênero e raça/etnia na França, foi possível trazer à tona uma força vital que pouco tem sido valorizada como potência de mudança: trata-se da capacidade dos/das jovens de elaborarem teorias sobre suas próprias condições e trajetórias. Com efeito, os/as jovens reconhecem a disjunção entre o que seria importante nas suas vidas e o que as ações de Estado lhes propõem ou oferecem. Os jovens de Grigny Centre com os quais discutimos parecem ter mais clareza de que o grande inimigo é o próprio Estado e não seus vizinhos do bairro do lado, da cidade do norte, ou os árabes, ou os negros. Assim, o sentimento de solidariedade se constitui como elemento importante na luta contra um inimigo comum. Já para os jovens do Guajuviras, essa relação crítica com o Estado brasileiro é dividida com uma série de instituições e até mesmo com pessoas e grupos. Portanto, nesse último lócus os sentimentos de solidariedade e respeito se direcionam muito mais para as pessoas mais próximas, como aquelas da família e do grupo de amigos. Nas falas dos jovens, existem elementos imbricados em três dimensões importantes dos processos de diferenciação que produzem diferenças e identidades naquele contexto: a reputação, a força de caráter e a manutenção de uma rede relacional. Essas dimensões nos parecem fazer parte da maneira com que esses jovens homens se narram e, ao mesmo tempo, se apropriam dos espaços públicos aos quais tem acesso. Sobre sua relação com o Estado francês e brasileiro, poderíamos dizer que as ações de segurança implementadas para conter e reduzir a ameaça que o subúrbio representa – revistas constantes, prisões, invasões de casas e prédios de particulares, desrespeito a pessoas mais velhas e práticas racistas – são traduzidas como ações que precisam ser respondidas por esses jovens. Se o direito à violência por parte do Estado está legitimado, porque não teriam o direito a se defender? É o que eles se perguntam para justificar o ethos justiceiro que assumem. Assim, pode-se (e diríamos, deve-se) reconhecer que muitos dos elementos constitutivos dessas masculinidades juvenis se aproximam bastante daquelas masculinidades hegemônicas que temos confrontado no campo dos estudos de gênero. Ao mesmo tempo, talvez se deva também admitir que essas formas hegemônicas de masculinidade parecem, ainda, interessar aos “Estados” e às sociedades das quais fazemos parte; e isso tanto do ponto de vista de sua produtividade em termos de manutenção e fortalecimento da ordem instituída, quanto da potencialidade de seu capital eleitoral, em contextos de importantes reconfigurações de processos econômicos, de trabalho e de direitos sociais. Referências FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. São Paulo, Martins Fontes, 1999. GIBLIN, Béatrice. Dictionaire des Banlieus. Larousse, Paris, 2009.