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A Educação Permanente em Saúde como dispositivo de gestão setorial e de produção de trabalho vivo em saúde.
Resumo
O estudo adensa o debate no campo de desafios que têm sido apontados desde o movimento brasileiro de Reforma Sanitária para a transformação do modelo hegemônico na saúde, que tem conformado, de um lado, uma visão biologicista para o cuidado em saúde e, de outro, uma visão gerencial reducionista para o trabalho em saúde, com pouca permeabilidade às necessidades dos usuários, levando à perda da integralidade e da humanização. No ensino das profissões da saúde, persiste uma formação reduzida ao domínio de conhecimentos formais direcionados às regulações procedimentalistas, com escassa abertura a processos de ensino-aprendizagem que pensem o trabalho e o cotidiano vivo onde operam as diferentes profissões e ocupações, e às reinvenções que se efetuam em ato, nos processos de trabalho. Na gestão, sob as bases das racionalidades gerenciais e disciplinares hegemônicas, se perpetuam processos autoritários que constrangem e aprisionam o trabalho em saúde. Tangenciando esses tensionamentos, a tese destaca a importância de pensar em dispositivos que apostem na vitalidade dos cotidianos e suas forças micropolíticas para construir novas realidades. O problema desenhado aporta um exercício de interrogação e análise do trabalho em saúde com a interveniência da educação, tomando o trabalho como produção de práticas de vida, em que a educação se coloca como agência (mote e motor) à conformação complexa de realidades e caminho para o desenvolvimento institucional, coletivo e individual. Nessa perspectiva, o estudo se volta à Educação Permanente em Saúde num contexto de gestão pública, tomando a educação como estratégia estruturante da ação política de construir coletivos organizados em cotidianos de trabalho vivo em saúde. A educação responde pela introdução do dispositivo pedagógico na gestão setorial da saúde para a invenção de modos de trabalhar em saúde e de gerir o setor público em defesa da vida, comparecendo por suas interconexões com o Trabalho (Educação e Trabalho) e com a Saúde (Educação e Saúde), segundo um acoplamento inovador entre Educação e Gestão que contempla processos de ativação do pensamento problematizador e a construção de coletivos organizados de produção, integrando a formação, a gestão, a atenção e a participação social. As grandes questões que nortearam a pesquisa foram: a Educação Permanente em Saúde, em seu engendramento de formas culturais e existenciais que desestabilizem vigências, e a Gestão Pública, como dispositivo de gestão do trabalho para ativar micropolíticas e fluxos de desejo no campo da saúde. Para favorecer a apreensão da realidade no plano micropolítico, um estudo de caso, ancorado numa teoria embasada em dados complexos (narrativas, conversas, memórias e sinalização de formas culturais capturadas em passagens da mídia, de documentos e de entrevistas publicizadas), articula diferentes abordagens metodológicas (triangulação de métodos) numa perspectiva cartográfica. Um componente autobiográfico possibilitou que a própria pesquisadora também fosse lançada no campo de observação, em situação de arriscar-se a entender o seu próprio percurso e o seu processo de observar, ancorada numa dinâmica de conversações. Uma condição que exigiu escuta sensível, ideias fluidas e observação atenta para se colocar em alteridade com as intensidades e sensibilidades das zonas de insegurança e de fronteira. Ao tentar jogar luz sobre algum dado, iluminá-lo, foi necessário não perder a dimensão de outro órgão dos sentidos (o corpo tátil/corpo vibrátil); para não somente olhar para a realidade, mas tomar sua micropolítica, seus pontos de abertura, fechamento, linhas de fuga e recombinações. Esse arranjo metodológico possibilitou sugerir o conceito de lanternas hápticas (revisão teórica feita para sentir, não para interpretar) e de círculos em redes (rodas de conversação com um grupo de dirigentes municipais de saúde que estiveram, em duas gestões municipais, à frente da construção de um modelo tecnoassistencial, orientado pela integralidade, pelo trabalho em equipe e em defesa da vida). Um percurso que convocou estados de invenção, em que pesquisadora e pesquisados foram desafiados a se deixarem atravessar pelas inquietações emergidas da revisita/problematização do seu vivido, a aprender em alteridade processos que pudessem apresentar saídas para novas experimentações e inventividades. Foi possível evidenciar que nenhum modelo, norma ou decreto é capaz de impor o rumo a ser seguido à reconfiguração das práticas nos cotidianos vivos em que o trabalho ganha materialidade. Nenhum planejamento, por mais estratégico e participativo que seja, consegue dar conta da complexidade que envolve a gestão e a produção do cuidado em saúde. Governo e autogovernos coexistem, e mudanças de ordem micropolítica coengendram estruturas, o que leva a entender que não são as iniciativas de governo ou os modos de atuar em oposição que configuram as práticas, que não é na ausência de gestão que o trabalho se faz, tampouco é a gestão que controla o cotidiano ou a singularidade de cada encontro trabalhador-usuário. Por isso, à gestão que almeje instituir novas práticas no setor cabe garantir recursos para efetivá-las, mas, antes de tudo, disputar novas lógicas e estratégias tecnoassistenciais, apostando em processos em ato (micropolítica do trabalho), pois apenas se pode disputar novas lógicas de atenção e gestão no mundo do trabalho em saúde e apostar nos processos em ato. A tese reafirma que é necessário ativar a experiência da problematização do e no trabalho em saúde, considerando que a reconfiguração das práticas requer que sejam criados dispositivos que auxiliem os coletivos de trabalho a interrogar permanentemente os processos de trabalho. Assinala o lugar da Educação Permanente em Saúde na gestão do trabalho como intensidade de gestão do setor ou dos serviços de saúde, utilizando como lanternas hápticas as interfaces educação-saúde e educação-trabalho para pensar os desafios da gestão colegiada e a aprendizagem inventiva em cotidianos vivos do trabalho. Apresenta um olhar sobre como a Educação Permanente em Saúde pode operar no contexto do trabalho e sobre como um dispositivo pedagógico pode disparar políticas de subjetivação e práticas mais implicadas com a construção da integralidade. Defende que a Educação Permanente em Saúde é ferramenta potente para um processo de “gestão em escuta pedagógica”, que envolve coletivos gestão-trabalho que se expõem à participação social e a práticas de encontro no trabalho. A aprendizagem, como processo imaterial do trabalho agenciada pela gestão, tal como proporcionado pela Educação Permanente em Saúde, integra a ativação do trabalho vivo, de processos de autoanálise no trabalho e de abertura de espaços relacionais no interior da gestão, o que constrói a introdução da Educação no cotidiano dos serviços de saúde, necessária a uma política pública de saúde de afirmação e em defesa da vida.