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O sentido de autonomia no dispositivo de Gestão Autônoma da Medicação (GAM)
Resumo
A partir da Reforma Psiquiátrica (RP), as intervenções em saúde mental tem como orientação geral o princípio ético de cuidar sem segregar, entendendo que a exclusão do indivíduo portador de sofrimento mental da sociedade é iatrogênica. Trata-se de uma posição compartilhada atualmente por uma série de autores no campo da RP, a despeito da pluralidade de práticas e saberes que atravessam esse campo. Nesse contexto, o aumento da autonomia do usuário passa a assumir grande importância, sendo inclusive considerado por alguns como sendo o propósito mesmo da intervenção terapêutica (Leal, 2001). Porém, ainda que haja tal consenso, nota-se que o entendimento subjacente ao conceito de autonomia é plural. Destacamos duas políticas cognitivas (Kastrup, Tedesco & Passos, 2008) que permeiam os sentidos atribuídos à autonomia: uma representacional e outra enativa (Eirado et al, 2010). Na abordagem representacional, a autonomia é um atributo pertencente a um sujeito que é entendido como instância separada do mundo. Estão associados a esta perspectiva valores como: independência, autossuficiência, livre arbítrio. Nas abordagens enativas, sujeito e mundo são tomados como instâncias co-emergentes – que se distinguem, mas não se separam – e a autonomia é associada a uma experiência coletiva. Nessa abordagem, o problema da autonomia é pertinente à possibilidade do indivíduo gerar normas para si através da ampliação de seus laços sociais. Nessa concepção, considera-se que o sujeito é ele próprio produto de relações sociais. Compreende-se, portanto, que o indivíduo é tanto mais autônomo quanto maior forem as suas possibilidades de estabelecer relações em sociedade. A ideia de independência – presente em uma política cognitiva representacional– é abandonada. É interessante observar que na abordagem enativa há uma inversão completa dos valores costumeiramente atribuídos à noção de autonomia. Uma vez que sujeito e mundo são distintos, mas não separados, no lugar de independência, fala-se em ampliação das dependências, ou seja, de permeabilidade em relação ao mundo que surge. Autonomia, nessa abordagem, não diz mais respeito a uma pessoa, um sujeito, é necessário referi-la a um coletivo, às relações a partir das quais sujeitos e mundos são produzidos. Gostaríamos de tomar uma experiência no campo da saúde mental como foco de análise e de reflexão sobre o sentido de autonomia. Desde o ano de 2009, vem se desenvolvendo uma parceria entre a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), a Universidade Federal Fluminense (UFF) e a Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), para a realização de uma pesquisa relacionada à discussão de um Guia de Gestão Autônoma da Medicação (GAM) – de autoria canadense – nos equipamentos da rede de saúde mental brasileira. A partir dessa experiência, propomos pensar que sentidos de autonomia podem ser produzidos no campo da saúde pública. Uma experiência no campo da Saúde Mental: a aposta GAM A Gestão Autônoma de Medicação é uma proposta de mudança da experiência do uso de psicotrópicos empreendida no Canadá (Quebec), desde 1999. Tal proposta é resultado da problematização realizada por movimentos sociais acerca do uso de psicofármacos. Como produto deste projeto, foi criada uma ferramenta denominada “Meu Guia Pessoal”, que é utilizada pelos usuários de serviços alternativos canadenses que desejam repensar o uso da medicação O propósito de tal dispositivo é evitar a interrupção não assistida e repentina da medicação, através da criação de espaços nos quais se possa falar sobre a medicação e refletir sobre seu uso com vistas ao alcance de uma qualidade de vida mais satisfatória (Rodriguez & Perron, 2008). Durante o ano de 2011, o grupo de pesquisa da UFF, em parceria com a UFRGS e UNICAMP, vem desenvolvendo o projeto “Autonomia e Direitos Humanos: validação do guia de Gestão Autônoma da Medicação”, objetivando a validação do Guia que foi construído na primeira fase da pesquisa multicêntrica, o Guia GAM-BR. No estado do Rio, a validação do Guia GAM-BR foi realizada através da realização de dois grupos de intervenção GAM (um com usuários e outro com familiares) em um CAPS II situado em São Pedro d’Aldeia, cidade do interior do estado. Dispositivo GAM e a Experiência de Coletivização de Pontos de Vista A aposta feita no dispositivo GAM é a de que a leitura do Guia em grupos reunindo usuários e trabalhadores da rede de saúde mental promoveria um compartilhamento de pontos de vista acerca do tema do uso de psicofármacos e ensejaria a possibilidade de promover descentramentos de pontos de vista e uma ampliação da escuta à fala do outro. No grupo de intervenção realizado com familiares esta aposta é ampliada, pois não apenas se pretende fazer surgir os diferentes pontos de vista dos familiares e trabalhadores acerca do uso da medicação psiquiátrica, como também discutir com eles o ponto de vista do usuário. O Grupo de Intervenção com os Familiares é realizado com a proposta de provocar uma discussão acerca da experiência com a medicação dos usuários e da experiência de acompanhar este processo. O objetivo é provocar este grupo a se colocar as questões: a) “como é a experiência de lidar diariamente com familiares que fazem uso dos remédios psiquiátricos?”, b) “como deve ser a experiência de tomar esses remédios?”. À medida que os grupos estão sendo realizados, foi ficando mais claro o distanciamento do ponto de vista dos familiares acerca da experiência dos usuários com o uso de psicofármacos. Um exemplo desta afirmação pode ser encontrado logo no início do processo de discussão do Guia. Nas primeiras questões relativas à como o usuário se apresentaria a outras pessoas, ou quais são as suas preferências nas atividades cotidianas, com frequência os familiares ou respondem vagamente com um “não sei”, sem demonstrarem muito interesse pelo tema, ou fazem referência a categorias psiquiátricas (utilizando, por exemplo, um diagnóstico para descreverem os familiares). No decorrer dos encontros, o dispositivo vai permitindo evidenciar e problematizar coletivamente o desconhecimento dos familiares em relação à experiência dos usuários. Aos poucos, começam a surgir respostas como “Sabe que eu não sei? Acho que vou perguntar para ela quando chegar em casa”. É nesse sentido que dizemos que outro sentido para autonomia vai sendo construído. A autonomia se amplia gradativamente na medida em que o grupo de familiares começa a pensar a sua relação com os usuários em uma perspectiva menos autocentrada,se abrindo ao ponto de vista dos usuários. O grupo de familiares experimenta uma autonomia cogestiva, isto é, constrói coletivamente regras para lidar com seus familiares, abrindo-se à experiência do outro. A partir do compartilhamento de pontos de vista, percebe-se uma mudança no modo de participação dos familiares no grupo e a emergência de outra posição acerca dos direitos em saúde mental. O familiar reconhece a si e ao outro como sujeito de direito. Referências Bibliográficas: EIRADO, A., PASSOS, E., FERNANDES, C. V. A., GUIA, F. R., RATTO, F., CARVALHO, J. F., BARROS, L. M. R., VASCONCELOS, C. S. Estratégias de pesquisa no estudo da cognição: o caso das falsas lembranças. Psicologia e Sociedade, v.22, p.84 - 94, 2010. LEAL, E. M. Clinica e subjetividade contemporânea: a questão da autonomia na Reforma Psiquiátrica brasileira”. In A.C. Figueiredo & M.T. Cavalcanti (Org.). A reforma psiquiátrica e os desafios da desinstitucionalização – Contribuições à II conferência Nacional de Saúde Mental (pp. 69-83). Rio de Janeiro: IPUB/CUCA. KASTRUP, V., TEDESCO, S. & PASSOS, E. Políticas da Cognição. Porto Alegre: Editora Sulina, 2008. RODRIGUEZ, P. & PERRON, O. Psicotrópicos e saúde mental: escutar ou e regular o sofrimento? São Paulo: Hucitec, 2008