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O SUICÍDIO NA ROTA DOS GALPÕES DE FUMO: UM OLHAR ETNOGRÁFICO
Resumo
O suicídio, fato social (Durkheim, 2008) de elevada incidência, é considerado um importante problema de saúde pública e entendido como o ato pelo qual um indivíduo causa lesão a si mesmo, com qualquer grau de intenção letal ou conhecimento do verdadeiro motivo desse ato (OMS, 2001, Werlang 2004).O suicídio constitui uma situação complexa e de múltiplos determinantes, que mudam de acordo com a cultura, momento histórico e grupo social, sendo considerado um tema tabu em diferentes sociedades. Essas diferenças culturais fazem com que o ponto de vista da antropologia, represente um aporte potente para o entendimento do fenômeno.Este texto apresenta algumas reflexões acerca do trajeto metodológico da pesquisa intitulada “É Possível Prevenir a Antecipação do Fim? Suicídio de Idosos no Brasil e Possibilidades de Atuação do Setor Saúde” (Minayo e Cavalcante, 2010) referente à parte da investigação realizada na região sul do país.A pesquisa utilizou para a coleta de informações a denominada autópsia psicossocial desenvolvida por Edwin Shneidman (2004). As autópsias foram realizadas nos domicílios das famílias sobreviventes localizadas nos municípios de São Lourenço do Sul, Venâncio Aires e Candelária, no estado do Rio Grande do Sul/Brasil.Os municípios foram escolhidos por apresentarem elevados coeficientes de mortalidade por suicídio e possuírem uma rede de serviços de saúde capaz de atuar como retaguarda de apoio à pesquisa. A estratégia metodológica da pesquisa possibilitou um olhar etnográfico, que procuraremos descrever neste relato de experiência. O trabalho de campo foi realizado através do deslocamento do grupo aos municípios pesquisados, com visitas pré-agendadas às famílias em suas residências para a realização das entrevistas. A ida ao campo significou “ir para ver, ouvir, observar e comunicar-se, constituindo um movimento interacional de busca comunicativa com as crenças, opiniões, valores e categorias empíricas provenientes dos investigados, em interação e intersubjetividade” (Deslandes, 2005: 158).Os três municípios são de colonização alemã pomerana, parte católica e parte evangélica. São regrados pela ética do trabalho, do dever e da honra que os leva a viverem vidas frugais, economizando o excedente e, preocupados em não contrair dívidas ou gastar em excesso. Os pomeranos vieram ao Brasil em correntes migratórias no século XIX e ocorrem altas prevalências de suicídio nas regiões pomeranas, tanto na Europa quando no Brasil.Estivemos predominantemente em região rural, nas linhas ou colônias, cujo acesso se dá por meio de estradas de chão batido, onde vivem em propriedades isoladas e possuem poucas opções de diversão e convívio, além das cerimônias religiosas e dos eventos vitais. As casas são de alvenaria, possuem poucos móveis e são adornadas com fotos de família. Fomos recebidos em salas ou cozinhas amplas, podendo se observar as marcas do trabalho agrícola em equipamentos, vestuário e ferramentas. Algumas famílias têm cães de guarda e várias possuem automóveis. Ao lado ou em terreno próximo, o galpão de secar o fumo.Andamos pela orla da Lagoa dos Patos em São Lourenço do Sul, em vales de acesso tão difícil, em Venâncio Aires, que precisamos entrevistar as famílias na Unidade Básica de Saúde. Em Candelária, atravessamos serras pedregosas, onde vivem os “pobres entre os pobres” em regiões de plantio de fumo fustigadas por desastres naturais (chuvas torrenciais alternadas de secas nos últimos anos), o que tem levado um percentual considerável desses agricultores a ser mudarem para as periferias das cidades próximas. Atingidos pela modernização produtiva, os pequenos agricultores assumem riscos, sempre na corda bamba entre o desejo de enriquecer e a dura realidade da perda da terra e do êxodo rural (Santos e Rostow, 2010).Ao ouvir as histórias, constatamos que muitos haviam se enforcado nos galpões de fumo e os familiares fizeram questão de mostrar as traves ou tesouras que serviram para amarrar a corda e onde acharam o corpo. Os galpões são construções rústicas, locais para a secagem e estocagem do fumo, espaço em que passaram grande parte da vida laboral, escravizados pelo trabalho estafante da lavoura fumageira. Esse padrão que se repetiu nos levou a pensar que percorremos “a rota dos suicídios nos galpões de fumo”, mortes que denunciam o sofrimento e a impotência vividos por esses homens e mulheres presos em um modelo de trabalho que, a cada safra, elimina os que não conseguiram alcançar a produtividade ou a qualidade estipulada.Essa experiência nos fez refletir o quanto a pesquisa etnográfica no âmbito da saúde pública oferece contribuições de sentido epistemológico e político, possibilitando uma compreensão em profundidade dos fenômenos observados (Minayo, 2004).REFERÊNCIASDESLANDES S. Trabalho de campo: construção de dados qualitativos e quantitativos. In: Minayo MCS (org) Avaliação por triangulação de métodos, Abordagem de Programas Sociais. Rio de Janeiro: Hucitec, 2005. P. 157-184.DURKHEIM, Émile. O suicídio. Livro II, cap. V, pág. 294. São Paulo, Martin Claret, 2008.MINAYO MCS, CAVALCANTE FG. É possível prevenir a antecipação do fim? Suicídio de Idosos no Brasil e possibilidades de Atuação do Setor Saúde. Projeto de pesquisa, CLAVES, 2010.MINAYO MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo: Hucitec; 2004.OMS. Organização Mundial de Saúde. Relatório sobre a saúde no mundo 2001: saúde mental - nova concepção, nova esperança. Genebra. 2001.SANTOS JCS & RISTOW MR. Suicídios: fato social e desenvolvimentismo na basedos atentados contra a vida Emancipação, Ponta Grossa, 10(2): 563-576, 2010. Disponível em: http: //www.revistas2.uepg.br/index.php/emancipacaoSHNEIDMAN ES. Autopsy of a Suicidal Mind. [S.l.]: Oxford University Press, 2004.WERLANG BG, BOTEGA NJ. Comportamento suicida. Porto Alegre: Artmed; 2004.