Rede Unida, 10º Congresso Internacional da Rede Unida


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O Ensino Como Um Encontro E Seus Afectos Pautado Pela Liberdade Do Trabalho Vivo Na Educação: Uma Experiência No Ensino Médico na UFF.
Túlio Batista Franco

Resumo


O conhecimento útil, o conhecimento em que a existência humana está em questão, é um modo de conhecimento relacional, a um temo assertivo e prescritivo, e capaz de produzir uma mudança no modo de ser do sujeito. (Foucault, 2004). Introdução A disciplina Planejamento e Gerência em Saúde II do curso de Medicina da Universidade Federal Fluminense (Niterói-RJ) é ministrada no 5º. Período[1], e tem como ementa curricular “Fundamentos da Programação: organização e gerência de Unidades Locais. Informação e Avaliação do Sistema Local” (idUF, 2006). Passados quase 20 anos da reforma curricular do curso de medicina da UFF verifica-se que a ementa tal como consta nos registros curriculares já não é mais a que se verifica no desenvolvimento atual da disciplina. Novos conhecimentos em relação à organização e funcionamento das redes de saúde, a incorporação de uma multiplicidade de novos conhecimentos, as necessidades atuais de formação do médico, as tensões cotidianas na relação do ensino e aprendizagem, e sobretudo o Trabalho Vivo[2] do professor fizeram com que o conteúdo e forma de conduzir a disciplina foram ganhando novas modelagens. A cada semestre a preparação para o desenvolvimento da disciplina nos desafia, e a dificuldade que nos impõe é justamente no fato de que não se pretende apenas agregar mais conhecimento ao aluno, mas além disto, se tem por objetivo criar no futuro médico uma práxis guiada por valores humanitários e de solidariedade, associada à capacidade de interpretar e intervir no ambiente institucional ao qual se insere. Esta é a questão fundamental pois se tem como pressuposto que o trabalhador na saúde deve ser ativo na busca de soluções para o melhor desempenho dos serviços, tomando como central a construção de uma rede “usuário centrada”, onde o protagonismo do trabalhador é fator fundamental para este objetivo. O médico terá uma ação protagônica se tiver instrumentos para o exercício cotidiano da auto-análise e autogestão (Baremblitt, 2002). Estes são alguns requisitos para o exercício cotidiano de um trabalhador que é altivo na construção dos seus próprios projetos, e no nosso entendimento para o exercício coletivo, horizontal e ascendente, do planejamento. Para alcançar estes objetivos na disciplina constituiu-se uma centralidade no tema do trabalho em saúde contextualizado na produção do cuidado, e o próprio trabalhador como seu principal protagonista. Neste sentido na prática da disciplina procura-se produzir uma intervenção em dois planos: Primeiro conceitual, no qual os alunos podem se apropriar de conceitos os quais vão utilizar no seu trabalho e vida profissional. Assim pretende-se criar uma dinâmica de instrumentalização, de desenvolvimento de conceitos que ao mesmo tempo são ferramentas que o futuro profissional poderá utilizar para suas intervenções no ambiente institucional ao qual esteja atuando. Segundo se tem como objetivo expor o aluno aos cenários de prática, produzindo assim um encontro com a realidade tal como ela se apresenta no ambiente de trabalho e produção do cuidado. E esta exposição deve se dar com um sujeito ativo, ou seja, o aluno e futuro médico é também protagonista da produção desta lugar, uma Unidade de Produção do Cuidado, na medida em que ele faz um exercício de análise da Unidade e os processos ali vivenciados, utilizando os conceitos os quais tem discutido na disciplina. Pretende-se assim criar uma práxis para além da pura discussão teórica e é na prática e cotidiano, nos múltiplis encontros com outros docentes, usuários, os próprios colegas de turma, que vai se produzindo a aprendizagem, sendo que o próprio aluno ao longo do tempo obtém o efeito deste processo dinâmico. O que nos desafia é fazer da disciplina um dispositivo de qualificação do trabalho em saúde, e da forma que cada um significa o cuidado, e seu próprio trabalho como futuro médico. A questão central é produzir uma disciplina que seja dispositivo para a mudança do próprio sujeito, operando nele um processo de cognição, com ênfase no conhecimento técnico, e subjetivação que tem como centro a mudança na subjetividade. Isto significa apostar em um sujeito capaz de produzir a si mesmo com base nas suas próprias vivências. O encontro com o mundo do trabalho em saúde é capaz de afetar o aluno, conforme sugere Espinosa, citado em Deleuze (2002), segundo o qual os corpos têm uma capacidade de afecto, que se dá mutuamente, e o efeito imediato é a formação de sentidos para o trabalho e o cuidado. Um processo se abre no sentido de formar novas subjetividades, capazes de fato de mudar a forma como cada um significa o mundo e com ele interage. Para isto é necessário produzir novos agenciamentos, em condições de afetar o aluno de medicina ao ponto de produzir nele a práxis na saúde pautada pela idéia geral de solidariedade. Transformar o aluno em sujeito do seu próprio aprendizado é uma mudança estrutural no modo de significar a educação e as formas de ensino. Nesta relação não há o que sabe, e o que não sabe, mas se estabelece uma relação que se supõe seja em rede pois envolve inúmeros atores sociais, o aluno de medicina, professores, monitores, trabalhadores da saúde, usuários de serviços, docentes de outras disciplinas. Há neste emaranhado de relações a possibilidade de uma dinâmica intensa voltada ao cuidado e formação em saúde. A maior aposta da disciplina é no protagonismo do aluno, ele se torna um produtor e é orientando a assumir o gesto da produção da aprendizagem. Sua atividade é marcada pela atividade na disciplina, e estimulado ao protagonismo, a ter iniciativas, a interagir com todos os que se inserem no cenário de práticas do qual participa. Pretende-se formar um trabalhador capaz de inovação, altivo na construção de uma nova prática, e portanto aptos a produzirem em si uma nova ética do cuidado em saúde. Essa é ao que me parece a questão central, ou seja, pensar o logos como dispositivo para o ethos, ou, o conhecimento capaz de se transformar em uma ética, como sugere Foucault (2004). O trabalho com a disciplina de PGSII tem sido uma permanente busca por ativar nos alunos uma forma de olhar os lugares de práticas em que estão. Chamamos de olhar a forma de analisar, perceber, reconhecer, interpretar o acontecimento ao qual se expõe. Avaliar é sempre um modo de olhar, portanto a depender de como este é realizado, se institui determinados sentidos para a produção na saúde. Há um esforço para que se olhe com o conhecimento e sua base instrumental, os conceitos, o que Rolnik (2002) chama de olhar retina, este ortopédico, capaz de dimensionar os fatos pela sua forma. Acoplado a este há um outro olhar, capaz de perceber o mundo sensível, dos afectos, as subjetividades em ação, a percepção do cuidado em saúde como algo na dimensão da “pele”. É o que Rolnik chamou de “olhar vibrátil”, que só é adquirido com base no encontro e os acontecimentos que o constituem. O esforço realizado é para adotar os alunos de uma capacidade de análise e auto-análise e construírem uma ética para sua relação com os usuários e outros trabalhadores, esta ética é seu próprio agir no cotidiano. Este texto tem por objetivo descrever a experiência de ensino na disciplina PGSII no formato em que ela foi desenvolvida para os anos de 2011 e 2012, tendo como um primeiro pressuposto o fato de que o processo de ensino-aprendizagem desenvolvido pela própria disciplina, a recria a cada ano, e a mesma vai operando modificações na medida da sua própria evolução. Mudanças foram observadas durante os mais de 7 anos de experiência nesta disciplina, quando se verifica que há uma tensão produtiva no funcionamento da disciplina e processo de aprendizagem. Isto também força a permanentes modificações tanto no conteúdo quanto no método de ensino. É na relação do professor com aluno, deste com seus colegas e do professor com seus pares que vai se produzir o ensino. Portanto a ementa e o currículo vão ganhando novos contornos no cotidiano de desenvolvimento do curso. É como se houvesse um currículo e ementa instituídos, se valendo de uma idealização do momento de sua fundação; e um outro currículo e ementa que se constituem em ato, no calor das relações de aprendizagem, pautada pela dinâmica dos acontecimentos que rondam o espectro do que nos chamamos Unidades de Produção Pedagógica[3], seja uma sala de aula, ou Unidades e Equipes de Saúde em qualquer ponto da rede de atenção. A experiência com a disciplina fez desenvolver ao longo do tempo uma proposta que tenta refletir o momento e as necessidades de formação do futuro médico, no que diz respeito à sua prática institucional cotidiana. Assim, entendemos que o objetivo desta disciplina no atual momento seja o de criar a competência em analisar os diversos cenários da rede de saúde, sobretudo nas práticas de trabalho e cuidado. Esta análise do processo produtivo do cuidado, contextualizado nos cenários de práticas, não exclui o próprio profissional, pois o seu processo de trabalho o coloca também em análise junto com o processo em que está vivenciando. Isto porque o processo de trabalho é centrado no Trabalho Vivo em ato, e isto faz com que a análise sobre o trabalho e produção do cuidado seja também um processo auto -analítico. Isto é o que dá possibilidade ao profissional em intervir nos cenários de práticas e mudar o contexto em que trabalha, orientado por seus próprios projetos profissionais e de vida, que podem ser coincidentes com os objetivos institucionais ou não. Portanto, seguimos um plano de trabalho que tenta acoplar teoria e prática, não fazendo esta distinção a priori, tratando como um só elemento. A condução desta proposta requer que os alunos sejam agentes do seu próprio aprendizado, o que significa que a disciplina deveria possibilitar e valorizar a sua atividade e protagonismo, abrindo para os diversos agenciamentos possíveis a partir do contato de cada um com seu campo de estágio o qual seria o objeto de análise. O formato da disciplina de PGSII dá a mobilidade necessária para empreender o ensino em campos de trabalho nos quais os alunos estejam estagiando ou outros que possam ser criados de acordo com interesse dos mesmos. Elegemos então duas Unidades de Produção Pedagógica para operar a proposta de condução da disciplina: I) A sala de aula, que é utilizada para orientação do trabalho de campo, discussões teóricas de conceitos que são ferramentas com as quais os alunos vão realizar as análises das Unidades de Saúde às quais estão inseridos, ou, Micro-Unidades, instrumentalização dos alunos para coleta de dados, processamento e análise dos mesmos, interação entre os diversos grupos de alunos que se dispersam por vários campos de trabalho, enfim, a sala de aula é o lugar de preparar a sua “caixa de ferramentas” as quais serão utilizadas no seu próprio aprendizado. II) A Unidade ou Micro-Unidade de Saúde à qual os alunos realizam a prática, observam, coletam dados, e procedem ao exercício de análise. Sugere-se que os mesmos façam esta prática no campo de estágio de outra disciplina, assim evita-se superposição de trabalho, pois ao mesmo tempo em que fazem o estágio podem exercitar os conceitos, articular seu pensamento em construção, pensar sobre os exercícios de análise. Os alunos têm liberdade de se vincularem a outros campos de estágio se assim for da sua preferência. Pressuposto para desenvolvimento da disciplina PGSII A disciplina foi estruturada de tal forma que os alunos tenham atividades nas Unidades de Produção Pedagógica, de forma articulada e sempre associada à sua prática, ao exercício de análise da Unidade à qual estão estagiando. Além de um campo prático de estudo, estipulou-se que a disciplina PGSII teria como pressupostos: I) Processos de ensino devem estar pautados no funcionamento da rede de serviços de saúde, isto é, nos lugares onde há o encontro do profissional com o mundo da produção do cuidado, envolvendo toda a rede de relações, saberes, fazeres, micro-poderes que se instalam nos cenários de práticas, e têm no cotidiano uma dinâmica em alta intensidade. A aposta que se faz é que, a partir do encontro que se produz entre o aluno e toda dinâmica existente na Unidade de Produção do Cuidado, que neste caso é também uma Unidade de Produção Pedagógica, se efetua aí um certo aprendizado, com base nos próprios afetos que são intensificados e percebidos pelos alunos, que sofrem os efeitos de tudo o que ocorre neste cenário, na relação com os usuários e outros profissionais. O encontro começa pela descrição do ambiente sob diversos aspectos, inclusive a atividades dos trabalhadores e usuários. Estes são incorporados junto com o próprio aluno neste cenário, e analisados no contexto. A descrição ao final é também de sua própria inserção no cenário. O ambiente pode atravessar o próprio aluno revelando-se a ele com toda carga de objetividade e subjetividade presente na relação de trabalho. A prioridade é expressar o que se vê, e no processo procura-se aguçar o olhar do próprio aluno. A aposta no encontro tem por base a idéia de Espinosa, citado por Deleuze (2002) de que os corpos no encontro têm a capacidade de afetar um ao outro, ou seja, projetar e assimilar mutuamente afectos, no exato momento em que se encontram. A afecção se expressa por sentimentos que são percebidos como um efeito do encontro, e independem da vontade dos que se encontram. A aprendizagem se dá também por sta via, e não apenas pela cognoscente. A via da sensibilidade, da percepção do mundo pela sua dimensão sensível. Segundo Espinosa citado por Deleuze, um bom encontro é capaz de causar alegria, e um mau encontro tristeza, tendo por efeito a realização em cada um de uma potência de agir no mundo, sendo que as “paixões alegres” vão reduzir esta potência vital, e as “paixões tristes” aumentá-la. Isto é o que podemos chamar de produção de subjetividade. Ora, o encontro do aluno de medicina com tudo o que lhe oferece o cenário de práticas e suas múltiplias relações, produz uma percepção deste lugar, o que faz com que ele o signifique de modo singular. Há no processo uma subjetividade que se forma e vai operar na sua vida profissional como fator da sua própria prática. Neste caso o encontro que se produz é entre o aluno e a multiplicidade presente no cenário da sua prática, e o que se vê é um processo de aprendizagem que opera a cognição, agregando saber; e na subjetivação, mudando a subjetividade dos alunos, na medida em que eles vão significando o mundo do cuidado com base na experimentação do mundo, concomitante ao exercício da razão. As duas dimensões se acoplam em um mesmo processo. II) Educação e trabalho são imanentes entre si, ou seja, todo processo educacional é para um trabalho, e todo trabalho envolve o saber e aprendizagem em ato. Portanto, a proposta de aprendizagem na disciplina PGSII toma como central a questão do próprio trabalho em saúde, em um contexto amplo, em que todo o jogo da micropolitica se expressa, as redes de relações no trabalho, os poderes instituídos, os movimentos instituintes, são temas presentes nas discussões sobre os casos estudados, os relatos dos dados coletados da Unidade de Saúde na qual fazem o trabalho, enfim, o mundo do trabalho entra em cena com toda sua complexidade, operando a aprendizagem, acoplado à produção pedagógica. É da atividade no estágio dos próprios alunos que são retirados os insumos para o aprendizado: dados, impressões, descrição de cenários, casos específicos, narrativas, encontros e desencontros, para uma análise sobre a Unidade ou Micro-Unidade de atenção à saúde. Importa discutir o fato de que o projeto da disciplina é produzir uma análise institucional na Unidade de Saúde onde estão estagiando. Ora, a instituição opera como linhas de força regulando a vida dos trabalhadores, usuários, estudantes, docentes e todos aqueles que habitam a Unidade de Saúde. Ora, estas linhas molares se encontram com a atividade cotidiana de cada um, uma molecularidade ativa, dinâmica, intensa, capaz de novas produções em movimentos instituintes dos cenários em que estão. É esta possibilidade que se tenta capturar quando a produção do cuidado é analisada. Percebe-se o quanto estes são móveis, sujeitos à atividade dos trabalhadores e usuários. E isto possibilita formar uma ideia de que é possível produzir mudanças, resistir às linhas de força molares e operar por “
inhas de fuga”, o que não significa sair do cenário, mas resistir resignificando o trabalho, o cuidado, produzindo o mundo, empreendendo novas formas de estar nas Unidades de Produção do Cuidado & Produção Pedagógica. A disciplina vai tomar como eixo a questão institucional, na qual vem um emaranhado de temas associados à ideia geral de produção do cuidado. III)O objetivo do processo de ensino é operar no plano da cognição e subjetivação procurando fazer com que o aluno dê sentido aos conceitos que estão sendo trabalhados. A questão central é fazer com que o aluno incorpore os conceitos, torne-os seus instrumentos, de forma que possa lançar mão dos mesmos sempre que isto se fizer necessário para compreender, analisar, intervir no ambiente institucional. Isto ocorre quando o conhecimento deixa de ser apenas o resultado de um processo cognitivo, mas opera também na formação da subjetividade. A exposição dos alunos aos cenários de prática tem este objetivo. Assim nos associamos à ideia formulada pela Comissão Interinstitucional Nacional de Avalição do Ensino Médico (Cinaem) e apresentado no Relatório da Cinaem: Preparando a Transformação da Educação Médica Brasileira (Santos, 2005), a Pedagogia do Fator de Exposição, conceito desenvolvido na III Fase do Projeto de Avaliação do Ensino Médico, Projeto CINAEM. Os fatores de exposição são objetos – recortes da realidade vivenciada, modos de ver e de delimitar um determinado campo da organização da vida, com existência real, natureza própria e sempre em produção, para os quais podemos dispor de um conjunto de saberes e tecnologias que nos permitem compreender, significar e intervir. (Santos, 2005, pág. 106). Estruturação do ensino e da disciplina de PGSII A experiência positiva no desenvolvimento desta disciplina se deu depois de viver uma dificuldade vivenciada no ano de 2010, causada por diversos fatores, em que os alunos se viram desestimulados. A disciplina dispõe de um formulário de avaliação, a ser preenchido anonimamente pelos alunos, no qual constaram as dificuldades que se vinham verificando durante o curso. Vimos que era necessário promover uma mudança radical na organização e funcionamento da disciplina, e então encaminhamos um Seminário com os futuros monitores para reestruturar seu funcionamento. Após algumas discussões foi proposta uma reestruturação produtiva na disciplina que teve como principais linhas de intervenção o seguinte: Ambiência – “espaço preparado para criar um meio físico e estético (ou psicológico) próprio para o exercício de atividades humanas” (Houaiss, 2009). Percebeu-se que o ambiente é absolutamente importante para o aprendizado, o conforto, espaço, condições de se reunir adequadamente formam o cenário propício para a atividade pedagógica. Assim procuramos viabilizar a mudança do espaço físico, o que se realizou mediante intensas negociações em uma instituição em que havia um constrangimento de espaços, e associado a esta iniciativa foi realizada a divisão de turmas procurando adequar melhor um quantitativo de alunos às atividades em classe. Conteúdo temático – o conteúdo da disciplina passou a priorizar a prática e as referências formadas a partir de cenários do SUS, dentro da ideia geral da inseparabilidade de educação e trabalho no campo da saúde. Foi assim que foram introduzidos estudos de casos já realizados em outros momentos como subsídio para a discussão teórica; o conteúdo da disciplina que deve articular a idéia geral de planejamento, passou a se referenciar principalmente em conceitos da análise institucional, buscando assim atualizar para os alunos um campo teórico-instrumental do nosso ponto de vista mais potente para intervir em cenários de práticas, considerando a vida de um profissional médico no seu local de trabalho. Este ponto é central, temos consciência que não é objetivo da disciplina formar planejadores, mas instrumentalizar os futuros médicos para uma ação como sujeitos plenos nos seus locais de trabalho, para a compreensão das relações de poder instituídas, identificação da potência instituinte, enfim, atuar no âmbito da micropolitica para defender certos interesses e projetos. Criou-se uma atmosfera no âmbito da disciplina que envolve em todos os sentidos a idéia de interação com o SUS, a realidade social que o cerca, os cenários de trabalho e cuidado em saúde, mediadas pela ação dos sujeitos e suas singularidades. Didática ou uma anti-didática – procurou-se instituir uma didática que subverte o próprio significado deste conceito segundo Demo (2010), a didática e aulas tal como concebidas não são atualmente suportes adequados para o aprendizado. Uma vez a Didatica Magna era a última invenção. Hoje é um clássico, importante como referência passada, mas, de todos os modos, passada. Entre as habilidades do século XXI não comparecem didática e aula, porque já não são vistas como suportes adequados da aprendizagem. (Pedro Demo, 2010). Então o que se buscou organizar junto dos alunos é um trabalho próximo a uma pesquisa, articulando a ideia de “pedagogia do fator de exposição” a um “estudo de caso” ou “cartografia” do lugar, relações e toda dinâmica que envolve a produção do cuidado, em que estão exercendo sua prática. O espaço supostamente para aula tornou-se um momento de troca entre os alunos em relação aos seus trabalhos, e orientação para que eles próprios realizem o seu aprendizado na relação com o cenário de práticas. Assim eles se tornaram protagonistas, e produzem a disciplina junto com os professores. Para ajudar neste processo buscou-se diversificar ao máximo os recursos para o trabalho conjunto, professores e alunos. É utilizado um site da disciplina[4] como um primeiro instrumento em que os próprios alunos podem se auto-orientar, pois o mesmo traz uma sessão de várias ferramentas que auxiliam o aluno no desenvolvimento dos seus trabalhos na disciplina. Há roteiro que orienta para o desenvolvimento do estudo de caso; links interessantes para acesso; materiais bibliográficos. Além do site foram introduzidos junto com as discussões em sala, a apresentação de vídeos curtos, de 5 a 8 minutos, trazendo temas relacionados aos que estão sendo estudados pelos alunos, ou em discussões teóricas, ou na observação dos cenários de prática. As aulas ganharam dinâmica, diversidade de recursos, discussões acaloradas. A avaliação do desempenho dos alunos é medida por sua produção durante o curso da disciplina, fortalecendo o aspecto de que o aluno é co-produtor da aprendizagem, das aulas, da disciplina. Aprender no trabalho e para o trabalho – educar para apreender o mundo e significá-lo. Mas que mundo? O intenso e espetacular mundo do trabalho na saúde, e suas múltiplas possibilidades de realização, produção de significados para o cuidado, enfim, o mundo que é e será a vida futura dos atuais alunos de medicina. Neste sentido a disciplina não faz a distinção entre teoria e prática, nem mesmo trabalho e educação, como já foi dito aqui, pois se imagina que há uma imanência entre estes conceitos, um está no outro, e por isto a condução das discussões, exercícios, coleta de dados, processamento de informações, produção do trabalho das disciplinas, enfim, ela se produz no emaranhado que se forma na realidade em que os alunos estão inseridos, sendo eles protagonistas destes mesmos cenários. Esta inserção nas micro-unidades de saúde e o esforço em produzir aprendizado neste lugar, é na verdade uma atividade em que o processo de ensino se dá, par e passu à produção de conhecimento, esta é a questão em foco: ensinar é produzir conhecimento, então a função do professor é agenciar nos alunos algo semelhante à ideia de aprender a aprender, ou seja, eles serão produtores do próprio aprendizado. Serão pesquisadores, pois esta atividade de aprendizagem é em si uma atividades de pesquisar os cenários onde estão estagiando. A avaliação do desempenho dos alunos é feita em torno dos produtos dos próprios alunos, como já mencionado e sua participação nas atividades. Considera-se para esta avaliação os seguintes aspectos: 1. Avaliar os estudos dirigidos como resultados das discussões em grupos, que são realizadas geralmente pautados por um texto que articula conceitos, os quais serão úteis para a análise das Unidades as quais os alunos estão freqüentando no seu estágio, e estudando para efeito da disciplina de PGSII. 2. A freqüências nas atividades coletivas é valorizada, por considerar que este é um momento fundamental de contato com o grupo de alunos, discussão coletiva de conceitos, socialização do desenvolvimento do próprio trabalho e para orientação das atividades. 3. Por fim o trabalho final que é apresentado na forma de relatório, e também em seminário de toda classe, ocasião em que os alunos apresentam para todo grupo os resultados, discussão e análises dos estudos que fizeram. Para o seminário se faz uma aposta na criatividade dos alunos, dando-lhes liberdade para prepararem a sua apresentação. Assim, admitem-se várias formas de linguagem, não só a escrita, podendo se expressarem em “dramatizações”, “música”, formas plásticas. Isto tem motivado os alunos sobremaneira, sendo que na experiência aqui relatada os mesmos compuseram duas músicas mencionando conceitos da própria disciplina. Este experiência tem sido muito rica no seu conteúdo, e ao dar liberdade para criarem suas formas de demonstração do trabalho, a conclusão da disciplina se faz com humor, alegria, associada às importantes discussões levantadas pelo trabalho apresentado. Todo esforço de desenvolvimento da disciplina a mantém viva. O que isto significa? Uma disciplina que subverte o próprio conceito “disciplinar” e liberta para o aprendizado, a interação de saberes, o acoplamento entre teoria e prática eliminando ao máximo a sua diferença. Enfim, uma disciplina que se esforça por produzir em si mesma um espaço de criação, “autopoiese” no conceito de Maturana e Varela (1997), isto é, tem a capacidade de se auto-produzir, mantendo-se dinâmica, capaz de encarar o novo como parte dos processos vividos, se lançar ao inesperado, absorve proposições inovadoras e abrir para novas práticas. A idéia de liberdade é central para produzir na disciplina uma dinâmica vital, de auto-produção pedagógica. Pois se temos como pressuposto que a aprendizagem se dá em um encontro, entre o aluno e o suposto objeto, os espaços entre si precisam se pautar pela possibilidade de realização de ambos. Este encontro se constitui também como atividade de trabalho, que materializa o desejo de aprender, e as redes que se formam no processo de aprendizagem. Todo o processo acontece tendo como suporte a plataforma de produção pedagógica que é o Trabalho Vivo do professor, na sua relação com os demais docentes e os próprios alunos. E só é possível constituir uma disciplina que é ao mesmo tempo uma anti-disciplina, pois deve romper com as possibilidades de captura e instituir o máximo de liberdade, que constitui a essência do Trabalho Vivo. A disciplina com estas idéias que não se constituem em modelo, pois são singulares e podem acontecer de forma diferente em outros cenários, oferece a possibilidade de mudar, produzir-se conforme o processo de trabalho docente na relação com os alunos, e tudo pode também acontecer em ato, no exato momento do encontro entre ambos. Importa que os dispositivos educacionais tenham a centralidade do aluno e seu protagonismo. Produção Pedagógica em Rede. Os trabalhadores da educação trabalham em rede, essa é uma constatação importante realizada na observação do cotidiano do trabalho na docência, e no ensino tutorial em Unidades de Saúde. Os professores operam seu trabalho vivo com base em fortes conexões entre si, onde a ação de alguns complementa a ação de outros e vice-versa, conecta-se com os alunos, trabalhadores da saúde, e uma multiplicidade de agentes da aprendizagem no seu cotidiano. Há um dinâmico e rico cruzamento de saberes e fazeres, tecnologias, subjetividades, e é a partir desta configuração do trabalho, como um amálgama, que os atos educacionais se tornam produtivos e realizam o processo de aprendizagem. Trabalhadores da educação em atividade abrirem espaços de fala e de escuta entre si, e os alunos, onde estes espaços relacionais vão mediando seu processo de trabalho. Revelam para nós que “estabelecer relações” é um saber intrínseco à atividade pedagógica, pois o trabalho na educação é dependente de relações, é no encontro que se realiza o ato pedagógico. A rede que se forma tem tamanha intensidade, que é como se não existisse uma auto-suficiência no trabalho em educação, ou seja, nenhum docente poderia dizer que sozinho consegue concluir seu processo educacional de forma satisfatória, do ponto de vista da realização de um projeto pedagógico centrado nos próprios alunos e a formação de uma subjetividade agenciada por valores que resignifiquem o mundo. A rede que se forma e as ações educacionais fazem com que uns encontrem potência em outros – o processo produtivo pedagógico é altamente relacional. As relações se dão a partir de pactuações que ocorrem entre professores, alunos, e quando a aprendizagem envolve Unidades da rede de atenção à saúde, esta pactuação vai necessariamente incorporar os trabalhadores destas Unidades, seus gestores e usuários. Estas pactuações podem ser explícitas ou não, e são resultado de tensões e conflitos que se produzem no ato de constituição dos processos de ensino, podem se firmar a partir de acordos constituídos harmoniosamente ou não. O fato é que não há um pressuposto de como o pacto relacional é dado. Admitimos a idéia de que os fluxos-conectivos nas relações que operam a micropolítica do processo de trabalho do professor podem se dar até mesmo sem um pacto, mas apenas por fluxos de alta intensidade capazes de operar vias comunicacionais na dimensão do simbólico e subjetivo, e não necessariamente verbais e cognitivas. Essa alta densidade relacional se organiza como intrínseca à micropolítica do processo de trabalho na educação, sendo portanto constitutiva do mesmo. O Trabalho Vivo do professor abre inúmeros espaços relacionais que são dados pelos atos de fala, escuta, olhares, em que os sentidos operam junto com os saberes. Isso sem dúvida impacta o grau de resolutividade das ações educacionais. As redes que constituem a micropolítica do processo de trabalho se estruturam a partir de determinado território de saberes, práticas, semiótico e subjetivo. Em certas situações é possível perceber redes em que estão presentes cenários de práticas serializadas, não singulares e com baixo nível de fluxos-conectivos; e ao mesmo tempo, no mesmo cenário, redes rizomáticas operando subjetividades desejantes em alta potência com o trabalho vivo em ato. Por essa constatação, pode-se perceber o quanto é diverso o processo de trabalho na educação, onde instituído e instituinte estão presentes, significando processos de permanente disputa. Isso é particularmente mais forte em momentos de mudança, que sugerem sempre períodos de transição entre o velho e o novo, quando os cenários se confundem na sua conformação. Mesmo em situações de aparente estabilidade institucional, é possível perceber movimentos de mudanças no interior do processo de trabalho, que podem mexer com perfil das conexões e fluxos exercidos em certa rede de cuidados. Imaginar as redes que operam na micropolítica dos processos de trabalho como rizomáticas significa pensá-las como algo que opera através de linhas que atravessam os cenários de produção pedagógica, ativando as práticas de aprendizagem e o protagonismo dos alunos no seu próprio aprendizado. Essa imagem expressa a idéia geral de múltiplas conexões, realizadas fora de um eixo estruturante. Assim imaginamos que as redes rizomáticas na educação só existem porque o trabalho do professor tem a centralidade do Trabalho Vivo, opera em diferentes planos de liberdade, associados a processos de captura. A resultante deste jogo de forças se dá no processo de aprendizagem dos alunos e na idéia de uma atividade pedagógica centrada na produção de uma ética para a vida, o trabalho e cuidado em saúde. Conclusões E estrutu
ação da disciplina envolve uma