Rede Unida, 10º Congresso Internacional da Rede Unida


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O Espaço Lúdico na Unidade de Saúde Promotor de Saúde na Infância e Inovação no Cuidado
Cléo Mello Aráujo

Resumo


Esta experiência começa quando Policiais do Batalhão de Operações Especiais (Bope) começaram, na manhã de uma sexta-feira (26), a histórica incursão no Complexo do Alemão, na zona norte do Rio de Janeiro. Surgiu na secretaria de promoção de saúde planos de ações emergenciais que proporcionassem resguardo aos moradores, um desses planos foi a tenda de brincação para acolhermos as crianças que, em momento de total vulnerabilidade, precisariam de apoio, instrumentos, atividades que as tirassem do foco da tamanha violência que as cercavam. Foram 20 dias de oficina de brincação, oferecida à comunidade numa tenda instalada dentro da Clínica da Família Zilda Arns. A tenda ofereceu atividades lúdicas expressivas e com intensidade acima do esperado. A princípio a tenda foi aberta às crianças, mas no decorrer dos dias mães, pais, avós e cuidadores também se tornaram presença constante. Todos queriam fugir do estado de choque em que se encontravam e entrar na tenda para brincar. Foi comum ver mães e filhos brincando juntos com massinha colorida de modelar no tapete pedagógico, crianças e cuidadores que há dias não conseguiam dormir assustados, amedrontados dormindo sossegados no tapete colorido. Víamos famílias inteiras cantando ao som do violão, desenhado, brincando de roda ou ouvindo o fantoche cachorro a quem deram o nome de Rex Bille, interagindo livremente. Foi bom ver meninos e meninas dando linha à paz que tanto desejavam, fazendo e empinando pipas brancas, descendo do morro quem antes nunca havia descido e subindo de volta com o coração mais leve deixando na tenda a bagagem que havia trazido. Nas primeiras oficinas que foram denominadas como Brincação, foi percebida a inclinação musical de várias crianças, em sua maioria o que predominava era o funk, ritmo incorporado pela comunidade com uma vertente inclinada para a apologia ao sexo e ao corpo. Foram apresentados novos ritmos a elas, como: musica clássica, canções infantis, orquestradas e um resgate das cantigas de roda. No decorrer da oficina foi apresentada a possibilidade de formar um Coral e muitas das crianças se prontificaram de imediato. Começamos com um grupo de 12 (Doze), uma regente e ensaios aos sábados com duração de duas horas. Já na primeira apresentação dentro da Clinica da Família Zilda Arns para colaboradores e clientes, outras crianças manifestaram o desejo de participarem chegando atualmente ao total de 55 (Cinqüenta e cinco) crianças em um ano de trabalho. Nomeado por elas mesmas, a “Liga dos Cantantes” já se apresentaram em diversos eventos dentro e fora da clinica como na grande 1ª Semana do Bebê Carioca no aterro do flamengo, para mais de quatro mil pessoas junto com o grupo “Meu Pé de Laranja Rima”. Também já se apresentaram nas escolas localizadas ao entorno da Clínica, dentre outras oportunidades. Esses eventos têm trazido resultados significativos como a valorização das crianças por parte dos familiares ou cuidadores, valorização da comunidade através das crianças, melhor desempenho escolar, maior valorização do humano e a diminuição, em alguns casos, de comportamentos mais agressivos tanto das crianças como dos cuidadores. A música é uma das áreas das artes que está neste projeto visando enfatizar os aspectos da criação e percepção estética das crianças e o modo de tratar a apropriação de conteúdos imprescindíveis para a cultura do cidadão, propondo intensificar as relações das crianças, familiares e cuidadores tanto na sua leitura de mundo interior como exterior. O coral na Unidade de saúde tem por objetivos almejados: a comunicação, apreciação e expressão em música, a interpretação, improvisação, composição e a escuta. A apresentação da música como produto histórico de sons e ritmos do mundo, sendo promotora de saúde. Quatro meses depois o dia 26, dia da incursão no Complexo do Alemão, mais uma tragédia assolava o Rio de Janeiro na escola Tasso da Silveira em Realengo, tragédia que mobilizou todos os eixos da saúde e tornou-se mais uma vez urgente acolher, salvar, levar solidariedade e buscar incessantemente pela construção da resiliência das crianças e cuidadores afetados pela tragédia direta ou indiretamente. Começamos com oficinas lúdicas expressivas num espaço do auditório que logo se transformou num espaço de brincar e acolher. Começaram a chegar os primeiros parentes de vitimas mortas na escola, irmãos, primos, alunos e amigos, todos ainda impactados pela tamanha brutalidade. O relato de um dos meninos que se encontrava na escola na fatídica ocasião nos deixou em alerta “ Ainda sinto o cheiro e quentura do sangue do meu amigo. Tive que me esconder debaixo dele para não morrer”. A fala aconteceu em meio a uma brincadeira, onde a proposta era brincar de “ser psicólogo”. Cada criança vestida de avental, prontuário improvisado com prancheta e papel A4, lápis e devidamente equipadas, brincavam. Os psicólogos, os artes educadores e profissionais de saúde passaram a ser pacientes e era interessante como as crianças traziam soluções para seus amigos e para todos que faziam parte daquele cenário na construção de sua resiliência. A brincadeira era naquele momento o “remédio” mais solicitado, todos expressando através de papeis, tinta, massa para modelar suas angustias, seus medos e suas esperanças. Mais uma vez o lúdico protagonizou a saúde. Mesmo em situações diferenciadas tanto no Complexo do Alemão como em Realengo, as crianças se apropriaram aos poucos do espaço e, como disse um dos repórteres a nos visitar no Zilda Arns, “não há muito aqui, há lápis, papéis, massa para modelar coloridos, livro de pano, mas o que acontece nesse espaço é algo surpreendente”. Com aqueles materiais elas relataram suas vivências, desenharam suas experiências, externaram medos, anseios e convivência, expressaram de maneira comum seu cotidiano violento e todos os relatos que se deram se deram de maneira espontânea. A criatividade foi novamente a maior ferramenta, nosso guia, uma espécie de lei irrevogável dentro daqueles espaços, todas as atividades eram desencadeadas à partir da necessidade que encontrávamos, todas as brincadeiras iniciadas conforme a indigência nos batiam à porta. Enquanto o Espaço Lúdico Liga dos Brincantes já era uma realidade na Clinica da Família Zilda Arns iniciávamos o trabalho nas Clínicas Felipe Cardoso e Silvio Barbosa Antes mesmo que as primeiras oficinas de brincação fossem iniciadas, a violência dilatada pelo poder paralelo já havia deixado marcas e adiado as atividades com o fechamento esporádico da Unidade Silvio Barbosa. Quando foram inauguradas com pintura e contação de histórias, o Espaço Lúdico encontrou de imediato um terreno fértil para a criatividade e o mundo do “Faz de Conta” e da “brincadeira” romperam, sem grandes obstáculos, os limites da realidade que cercavam a Unidade e uma nova maneira de se integrar, foi recebida com fundamento, apoio e entusiasmo. “Todo mundo tem o seu lugar” foi uma das primeiras histórias contadas com encenação e desenvoltura aos primeiros olhinhos atentos que se achegaram no espaço sinalizando por si só que aquele lugar pertencia a eles, fora idealizado para eles e que todas as atividades que ali fossem desenvolvidas os alcançaria como um abraço gigante, o abraço gigante da humanização. Desde o início, a euforia não nos impediu de desenharmos através da observação, os primeiros esboços, ressalvar as primeiras características, estruturas relacionais, modos e maneiras das crianças que entravam no Espaço Lúdico. Notamos que havia, entre algumas completamente desanuviadas e mergulhadas no brincar, as que brigavam por muito pouco, discutiam demonstrando desinteresse por uma ou outra atividade e embarcadas na algazarra perturbavam a brincadeira. Essas mesmas crianças já eram conhecidas por freqüentarem a Clínica e demonstrarem o mesmo comportamento e por isso mesmo foram motivo de espanto para os funcionários da Unidade quando no decorrer das semanas esses mesmos meninos e meninas foram encontrados no tapete pedagógico envolvidas nas atividades propostas, cantando, ouvindo histórias atentas e empenhadas em demonstrar comprometimento. Notamos que alguns pais e cuidadores, com uma timidez característica, começaram aos poucos chegar e desejar entrar para brincar, desejo que claro, não foi apenas realizado, mas estimulado. Ao final da primeira semana de atividades mais um susto, a Unidade precisou ser fechada porque mais uma vez a violência não deu trégua, mas com desafio e suporte consolidamos a instalação de um Espaço Lúdico na Unidade cuja comunidade ainda não recebera a Unidade da Polícia Pacificadora. Na Unidade Silvio Barbosa iniciamos com contratação de profissionais, capacitação de grupo de trabalho na unidade e a adequação e construção do espaço em desenvolvimento. O Espaço Lúdico Liga dos Brincantes em todas as Clínicas, além de desenvolver atividades lúdicas, servir como ponto de observação para encaminhamento de especialidades é antes de tudo uma porta de acolhimento da comunidade na unidade. Um Espaço Lúdico em uma Unidade de saúde possibilita um olhar profundo no desenvolvimento infantil, é um espaço que oportuniza um olhar mais profundo do profissional da saúde a olhar a criança na sua integralidade. É preciso mergulhar no universo dos pequeninos, compreender e conhecê-los é, inevitavelmente, uma busca. É preciso criar laços fortes e estreitos com o universo infantil, e isto começa no exato momento em que você se ajoelha para falar de igual pra igual com ela ao invés de distante e covarde olhá-la de cima como o dono da verdade. É preciso saber ainda que a imaginação é inesgotável e que é preciso se aprofundar mais e mais nesse universo onde se produz saúde. Desejo profundamente que a busca pela alegria e pela paz dessas crianças não se cale dentro de si e que elas as busquem com afinco desvairado e louco até encontrarem o que desejam. As atividades nos Espaços Lúdicos nos provam mais uma vez que não se separa a criança do brincar, que não se pode transformá-la numa espécie de telespectador zumbi, impregná-la com a preguiça que reina no sofá e exala do controle remoto, nem lambuzá-la de violência simulada nos vídeos games nem com a violência real vivida do lado de fora da porta. O brincar e a criança. Uma espécie de reencontro acontece nos Espaços Lúdicos e por isso é tão mágico, tão profundo e transformador. Cléo Lima. Formação: Pedagoga Cargo na Secretaria: Pedagoga em saúde Atuação: Na Coordenação de Educação e Saúde/Promoção de Saúde